A indicação de leitura foi do advogado Custódio Neto, da Cariogalo. Vejam que bela reportagem do Correio Braziliense, que pode ser constatada por todos nós em nosso dia a dia em qualquer canto do Brasil. E que ridículas e safadas desculpas de cartolas das federações: “Seu filho será torcedor do Barcelona (ou do Real, ou de um Manchester…)”
Como os maiores clubes globais estão roubando o espaço do seu time do coração
Braitner Moreira e Victor Gammaro, do Correio Braziliense
O Barcelona é o time mais popular do Japão. O Manchester United domina China e Índia. Na Argélia, só dá Arsenal. O Liverpool reina na Tailândia. Os maiores clubes da Europa passaram as últimas décadas salteando o público dos países nos quais os times têm nível técnico risível. A novidade é que, agora, estão entre nós. Basta olhar a seu redor, para qualquer aglomeração de fãs jovens de futebol. As agremiações mais ricas do planeta descobriram a América Latina.
Seu filho será torcedor do Barcelona. Se ainda não for: a “ameaça” pode soar até defasada para um pai cuja criança passe o domingo vestindo uma camisa de Neymar ou Messi.
As pesquisas de opinião começaram a encontrar brasileiros natos que se apresentam como torcedores exclusivos de equipes europeias. “Até pouco tempo atrás, isso era impensável para o Brasil. Era uma coisa de Índia e Paquistão. Se esse movimento se confirmar, será um risco para os times daqui”, pondera José Colagrossi, diretor executivo do Ibope Repucom.
O torcedor que passou a ignorar os times daqui é jovem, tem de 16 a 29 anos, está nas classes A ou B e acessa internet rápida pelo celular. O perfil foi traçado pela empresa de pesquisa. “Esse grupo não existia. Agora, passou a existir estatisticamente”, diz Colagrossi. “Ainda está dentro de uma curva de erro que não me permite dizer se é 0,5% ou 2% do torcedor brasileiro, ainda é cedo. Estatisticamente, o importante é que esse grupo não para de crescer.”
A comercialização de uniformes oficiais comprova a tendência do crescimento internacional em nosso solo. A Netshoes vende quatro camisas do Barcelona para cada uma do Botafogo ou do Fluminense.
A oferta crescente de TV a cabo e internet banda larga é a principal parceira dos gigantes europeus. “O amor pelo Barcelona é o amor pelo sublime”, filosofa o sociólogo Luciano Paccagnella, da Universidade de Turim, acrescentando que “vivemos num mundo em que, da classe média para cima, não há mais fronteiras”. Na visão dele, times e atletas vitoriosos seguirão atraindo fãs sem importar o país.
O Barcelona, maior caso de sucesso da década tanto esportiva quanto comercialmente, tem 10,3 milhões de simpatizantes ou torcedores no Brasil — considerando apenas os brasileiros de 16 a 29 anos. Nesta faixa etária, o time catalão já é a quinta maior torcida do país, à frente de Vasco, Cruzeiro e Atlético-MG. O Real Madrid soma 4,9 milhões de torcedores. O Manchester United completa o top 3, com 2,5 milhões.
Sonhos de Camp Nou e Bernabéu
Não, eles não ligam para o time do pai
“Na minha época, não tinha isso”, insiste repetidamente o policial militar aposentado Joseny Lopes, 50 anos, pai de Lucas Lopes, 16, torcedor fanático do Real Madrid. “Eu queria que ele torcesse para o meu time, mas ele acompanha o Real todos os dias”, lamenta o mais velho, morador de Samambaia, torcedor do Goiás.
Lucas diz que “até tentou” acompanhar a escolha do pai e torcer pelo clube goiano. O problema? “Infelizmente, o Goiás não me dava alegrias, títulos, o que o torcedor gosta. Daí eu escolhi um time vencedor. Não dava pra escolher outro no Brasil, seria tenso por causa do meu pai”. Ele se decidiu pelo Real aos 7 anos.
O arquirrival do time de Madri tem a torcida dos primos Pedro Balduíno, 9, e João Lucas Ventura, 7. O sonho da dupla é assistir a um jogo do time do coração no Camp Nou.
Mãe do primeiro e tia do segundo, Fernanda Balduíno lamenta o custo da paixão dos meninos. “Gasto dinheiro com camisa e eles pedem para assistir a uma partida no estádio. Tenho parentes na França, quem sabe um dia?”, projeta a nutricionista.
A onipresença dos maiores times do mundo na TV contribui para a criação de um ambiente capaz de atrair o público muito jovem. “A gente percebe crianças pequenininhas, de 3 anos, verbalizando Messi e Neymar. Para elas, o futebol é muito próximo do brinquedo”, avalia a psicopedagoga Telma Gualberto. “Os jogadores ganham muito dinheiro, são famosos, viajam, moram em outro país. É só encantamento, não há uma dimensão concreta.”
Nós vamos invadir o seu mercado
Comprar camisa do Paysandu é coisa do passado
Belém, capital do Pará, tem a maior feira a céu aberto da América Latina. Mais de 50 mil pessoas visitam o Mercado Ver-o-Peso todos os dias. Nos pavilhões, divididos por setores, alinham-se garrafadas, ervas medicinais, patos vivos, peixes frescos. A sequência de barracas na Boulevard Castilhos França se encerra num setor que mistura confecções locais e produtos piratas.
Enquanto as páginas esportivas dos jornais da cidade se limitam a escrever sobre Paysandu e Remo, a vida é diferente longe do papel. Na banca da ponta, sob bonés promovendo o açaí, estavam duas camisas do Palmeiras, três do Borussia Dortmund e uma da Juventus. No quiosque ao lado, uniformes do Barcelona e do Chelsea. Em seguida, espaço para o Real Madrid. Eis a realidade do Ver-o-Peso: por R$ 10, é mais fácil comprar uma camisa falsificada de um gigante europeu do que dos dois times que, juntos, têm 90 títulos estaduais.
A oferta no Ver-o-Peso é a mesma Brasil afora. Em Brasília, a situação se repete na Feira dos Importados e na Feira do Guará, por exemplo. Também sobra opção de equipes internacionais em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde jogam os times mais ricos da Série A.
O país testemunha, hoje, uma segunda invasão. Entre os anos 1970 e 1980, na era de ouro do rádio e no princípio da transmissão ao vivo da TV, “os times do Sul” ameaçavam as potências de Norte e Nordeste, roubando-lhes torcedores. Agora, graças à popularização da internet banda larga e da TV a cabo, os conquistadores são os superclubes da Europa — afetando também os grandes centros nacionais.
Estrangeiro desde 1979
Nottingham Forest, Malmö, Roma e Avellino: conheça os pioneiros das transmissões de futebol europeu
O primeiro jogo entre dois clubes estrangeiros exibido para o Brasil foi uma gravação da final da Liga dos Campeões de 1979, quando o inglês Nottingham Forest foi campeão diante do sueco Malmö. A pioneira foi a TVS, rede de Silvio Santos. O primeiro jogo ao vivo só seria transmitido em 1º de maio de 1983. Naquele domingo, a Bandeirantes mostrou, ao vivo, Roma 2 x 0 Avellino, gols de Falcão e Di Bartolomei. O time da capital ganharia o título do Campeonato Italiano na semana seguinte, com transmissão para o Brasil.
A Globo estrearia no futebol internacional em 30 de maio de 1984, com Roma 1 x 1 Liverpool, decisão da Liga dos Campeões. A última estreia da década foi a da Manchete, que em 1º de abril de 1989 exibiria Barcelona 0 x 0 Real Madrid, clássico pelo Campeonato Espanhol.
Em 2016, muito mudou. Somados, 16 canais das TVs aberta e fechada transmitiram 728 jogos de futebol ao vivo no primeiro trimestre deste ano. Em média, são nove jogos por dia — sem contar partidas oferecidas exclusivamente pelo sistema pay-per-view.
A oferta é longa. O público brasileiro teve acesso a 224 times estrangeiros, oriundos de 30 países diferentes. Da Inglaterra, foram exibidos jogos de 37 equipes de quatro divisões, por seis competições diferentes. A Itália viu-se representada por 35 clubes de três divisões. O Alessandria, da terceirona, foi tão exibido na TV fechada quanto Cruzeiro e Vasco, de janeiro a março.
O levantamento aponta que 115 times brasileiros tiveram suas partidas transmitidas nacionalmente nos três primeiros meses de 2016. A conta acabou inflada pela chegada do Esporte Interativo ao mercado.
O canal transmite competições antes ignoradas, tais como Copa do Nordeste, Copa Verde e campeonatos estaduais de Alagoas, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Sem as transmissões da rede, o número de equipes contempladas chegaria apenas a 62. Cada brasileiro passa, em média, 3 horas e 40 minutos on-line pelo celular todos os dias. A maior parte desse tempo é gasto em acesso a redes sociais, segundo a GlobalWebIndex. É um recorde mundial.
Um mercado tão amplo para o crescimento dos clubes da Série A, contudo, frequentemente acaba ignorado. Apenas três times do Brasileirão alcançaram 1 milhão de seguidores no Instagram; nenhuma equipe chegou a meio milhão de assinantes no Youtube. No Facebook, só três equipes têm mais curtidas entre usuários daqui do que os 5,6 milhões de brasileiros do Barcelona:Corinthians, Flamengo e São Paulo. E o crescimento não tem sido animador.
Entre os 12 clubes mais tradicionais do Brasil, o Fluminense é o dono do pior rendimento da internet. A cada mês, a página oficial tricolor recebe 1.624 novos fãs. O Barcelona vê movimento seis vezes maior. O Flu posta em português; o Barça, em espanhol, inglês e catalão. As equipes atualizam seus perfis com a mesma frequência, mas o time de Messi e Neymar ganha na interação e no conteúdo multimídia.
Muitas torcidas ultrapassaram o limite da internet. A Unidos por el Real Madrid é considerada a maior organizada gringa no país. As atividades da peña — como são chamados os movimentos de torcedores espanhóis — são acompanhadas por mais de 40 mil pessoas.
O ponto de encontro dos fanáticos é um bar de São Paulo, no qual cerca de 100 torcedores se reúnem para acompanhar os jogos mais importantes, com faixas e bandeiras. “Uns torcem igual para o Real Madrid e para um clube do Brasil. Para mim, é estranho”, diz Alessandra Brandão, 26 anos, presidente da peña.
Os associados da torcida brasileira do Real Madrid têm uma série de vantagens, como descontos em restaurantes espanhóis e camisas autografadas pelo elenco, por exemplo. A torcida é reconhecida pelo clube e tem até página própria no site do time.
Os maiores clubes do planeta buscam a internacionalização, hoje, tanto quanto os cavaleiros da távola redonda procuravam o Santo Graal. Desde 2014, os times de primeira divisão das cinco maiores ligas da Europa passaram por 56 cidades de 15 países fora do Velho Continente em amistosos, nos últimos dois anos. As turnês não se limitam mais aos gigantes. O Nice, da França, desbravou a Tunísia; o Mainz, da Alemanha, e o Bournemouth, da Inglaterra, foram aos Estados Unidos; o Celta de Vigo, da Espanha, mandou jogo no Uruguai.
Os clubes buscam no exterior aquilo que o Real Madrid já conquistou. O maior vencedor da história da Liga dos Campeões investe em imagem além do continente desde o século passado. Assim, tornou-se o primeiro superclube global.
Hoje, 75% das vendas de material esportivo oficial do Real Madrid ocorrem no exterior. Tão importante quanto isso é a extensão da torcida oficial. O clube registra 550 mil madridistas em 180 países, fãs que pagam de 15 a 30 euros anuais. O faturamento do Real com essa rubrica é de 10 milhões de euros por temporada — o suficiente para pagar o salário de Cristiano Ronaldo por seis meses.
A busca por madridistas é infindável. Em Brasília, em junho, uma clínica da Fundação Real Madrid deu a carteirinha de torcedor oficial por um ano aos 250 adolescentes de 12 a 17 anos atendidos. Para renová-la, claro, será preciso pagar por isso. “Isso é uma forma de trazer torcedores. A carteirinha dá descontos, sorteios, vantagens, conteúdos exclusivos na internet e viagens para a Espanha. O menino fica feliz com isso e continua durante a vida toda sendo torcedor do Real”, projeta José Loureiro, diretor do projeto no Brasil.
As clínicas também passaram por Florianópolis e Fortaleza, oferecendo treinamentos conduzidos por treinadores espanhóis a 750 jovens. O ex-atacante Sávio, tricampeão da Liga dos Campeões pelo Real, é o embaixador do projeto no país. “É legal você ter seu nome vinculado ao Real Madrid. O projeto me chama atenção pelo cuidado, qualidade e profissionalismo. Até o Real, do tamanho que é, precisa de ações como esta”, argumenta.
Por que não nós?
Engolidos pelo sucesso dos times europeus, representantes brasileiros ouvem alerta de especialistas: “Se não mudarmos, morreremos”. Federações não largam mão dos estaduais
Enquanto os gigantes europeus avançam no mercado consumidor do Brasil, os clubes daqui ainda não começaram o contra-ataque. “A prioridade do clube brasileiro é ser pequeno… Flamengo, Santos, Palmeiras, todos eles”, ataca Amir Somoggi, especialista em gestão esportiva, pós-graduado em marketing pela Universidade de Barcelona. “Os times daqui ficam contentes em fazer patrocínio pontual e pagar as contas”, completa.
O Corinthians ensaiou se tornar o primeiro superclube global brasileiro em 2013, época em que pagou 15 milhões de euros por Alexandre Pato. O Timão havia acabado de ganhar o Mundial de Clubes; a pequena fortuna surgiu graças a novos acordos de patrocínio, de material esportivo e de direitos de TV, além da proximidade da inauguração da arena em Itaquera. O atleta fracassou, a bolha estourou e hoje o Timão vive grave crise financeira. A diretoria alvinegra enfrenta dificuldades em pagar o estádio e, por isso, já diminuiu o investimento no elenco.
A desvalorização das marcas dos times daqui foi identificada pelo coordenador do curso de aperfeiçoamento em gestão de esportes da Fundação Getulio Vargas, Pedro Trengrouse. “A frequência nos estádios cai todo dia, é horrorosa. Há uma globalização de mão única.” Para ele, antes de pensar em se internacionalizar, as agremiações devem se preocupar primeiro em defender seu mercado no Brasil.
A Série A precisa ser rejuvenescida com urgência, prega Ivan Martinho, professor de marketing esportivo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “É difícil concorrer com quem faz o negócio direito”, avalia. O especialista acredita que, com o passar do tempo, será mais difícil convencer os mais jovens a se tornarem torcedores exclusivamente de equipes brasileiras: “Imagine uma criança palmeirense que vê seu ídolo indo para o Manchester City (Gabriel Jesus se apresentará na Inglaterra em janeiro). A chance de ele virar admirador do time inglês é grande”.
Os especialistas ouvidos pelo Correio avaliam que o menor fluxo financeiro e a desvalorização do real não podem servir de pretexto para a pouca influência global dos brasileiros. O desafio precisa ser “entender o futebol enquanto negócio”. “O futuro é sombrio, é uma tendência quase irreversível. Ou mudamos ou morremos”, prevê Amir Somoggi.
Os estaduais como salvação?
O regulamento do Campeonato Pernambucano fará com que os três clubes mais populares do Recife — Náutico, Santa Cruz e Sport — possam jogar até 39 vezes de janeiro a maio, numa maratona de confrontos pouco atrativos. Além disso, as datas marcadas poderão sofrer alterações na medida em que os clubes locais avancem na Copa do Nordeste.
Ainda assim, para o presidente da Federação Pernambucana de Futebol, Evandro Carvalho, a tabela criada por ele “deveria ser modelo para outros estados”. O dirigente acredita que o interesse do público brasileiro tenderia a crescer com “uma modernização dos campeonatos estaduais”.
As federações estaduais precisam da valorização dos clubes para seguirem vivas, por meio de taxas de transferências e de venda de ingressos. Mas, como forma de manter força política, ainda concentram a atenção nos campeonatos regionais, que representam uma parcela pequena do faturamento das equipes da Série A, apesar de ocupar um terço do calendário dos clubes de elite: 15 semanas.
A grande aposta da Federação de Futebol do Rio de Janeiro para aumentar a visibilidade o futebol do estado é a transmissão das partidas do Campeonato Carioca para países da Europa e da Ásia. O presidente da entidade, Rubens Lopes, cita o Bangu como exemplo de atrativo para o próximo estadual. “A contratação de Loco Abreu vai reacender a paixão do torcedor. O fortalecimento dos clubes é fonte de manutenção e rejuvenescimento da paixão”, aposta o cartola. No último Carioca, o Bangu não levou mais de 5 mil torcedores ao estádio nem na partida contra o Flamengo.
A fuga da realidade é o consolo da Federação Gaúcha de Futebol. “Não vejo os torcedores deixando de ser gremistas e colorados, por exemplo. O que existe é só uma admiração”, acredita o vice-presidente da entidade, Luciano Hocsnan. Para ele, o desafio do futebol brasileiro é reconquistar o crédito do torcedor: “Quando tivermos credibilidade nas nossas ações, o nosso futebol tem tudo para crescer. O berço do futebol é aqui”. A terceira camisa mais vendida no Rio Grande do Sul, no ano passado, foi a do Manchester City.
Expediente
Reportagem
Braitner Moreira
Victor Gammaro*
*Estagiário sob a supervisão de Leonardo Meireles
Fotos
- Torcedor do Barcelona (capa): Josep Lago/AFP
- Meninos fãs do Barcelona: Minervino Júnior/CB/D.A Press
- Mercado Ver-o-peso: Braitner Moreira/CB/D.A Press
- Transmissão direto de Verona: Reprodução do YouTube
- Fundação Real Madrid e avião do Real Madrid: Divulgação
- Estádio vazio: Daniel Ferreira/CB/D.A Press
Vídeos
- Meninos fãs do Barcelona: Minervino Júnior/CB/D.A Press
- Chamada de Verona x Udinese: Reprodução do YouTube
http://especiais.correiobraziliense.com.br/time-do-coracao
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