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Um ano depois da tragédia com a Chapecoense, o depoimento de um dos sobreviventes

Até hoje é difícil entender tudo o que aconteceu, envolvendo a morte de 71 pessoas, entre jogadores, dirigentes, funcionários do clube, tripulantes e colegas nossos da imprensa. O Globo de domingo entrevistou o lateral Alan Ruschel, que fala do acidente, dos dias após a tragédia e deste tempo que passou

‘A cicatriz da alma é a que mais dói’

CHAPECÓ (SC)– Um dia após a Chapecoense vencer o Vitória por 2 a 1 e assegurar sua permanência na série A do Brasileirão em 2018, os atletas chegavam eufóricos ao CT da Chape, na Água Amarela. Antes das 16h, Alan Ruschel já estava ali. De branco, além disso sem o uniforme, exibia um semblante sério – diferente do risonho meio-campista que brinca com os colegas – e aproximou-se paciente do QG montado ao lado externo do vestiário. Aos 28 anos, o gaúcho de Taquara, um dos seis sobreviventes da tragédia com o voo da Chapecoense que matou 71 pessoas de uma total de 77, em Cerro Gordo, Colômbia, não sabe dizer por que ele. Reconhece uma série de coincidências que o permitiram estar vivo e, ao relembrar esses fatores olhando para as cicatrizes do corpo, não hesita em dizer que isso nunca deixará de acompanhá-lo. “Tudo na vida tem um por que e um pra quê. igualmente não questiono a Deus por que fui eu que sobrevivi, por que foi o (Jackson) Follmannn, por que foi o Neto. Eu falo que a gente tem que transformar esse por que em para quê.

Vocês garantiram a permanência na série A do Campeonato Brasileiro. Olhando para a história de reconstrução da Chapecoense, essa vitória tem um significado a mais?

Tem, porque era mais difícil do que em outros anos. Desde 2013, quando o clube conseguiu o acesso à Série A, o foco sempre foi esse. Esse ano não foi diferente, além disso mais por tudo o que aconteceu. Foi dada ao clube uma chance de ficar três anos na série A, mas ele optou por não ficar. E acho que de maneira correta, até por respeito aos adversários. Embora fosse uma outra situação e a gente soubesse que seria muito mais difícil que os outros anos… O clube conquistou ontem o objetivo e acho que todo mundo está de parabéns.

Chegar ao período em que se completa um ano da tragédia traz que lembranças?

Hoje vem mais a saudade de tudo o que a gente viveu antes. Acho que pelo momento que eu vivo, pelo que a equipe vive, eu preciso aprender a diferenciar a mágoa da saudade. A mágoa, nesse momento, não cabe andar ao meu lado. Mas a saudade, sim. Acho que essa irá caminhar a vida toda. Hoje carrego cicatrizes em todo meu corpo, então para onde eu olho eu vou lembrar dessas pessoas que acabaram sumindo. Mas como eu falei quando saí do hospital: Quero honrar essas pessoas da melhor maneira possível. E acho que estou honrando pelo que eu venho fazendo dentro e fora de campo, pelo ser humano que me tornei…

Por quanto tempo essa mágoa o acompanhou, e em que momento ela foi mais forte?

Ela me acompanhou desde o momento em que eu fiquei sabendo o que aconteceu. A gente fica muito triste. Não sei quanto tempo ela durou, ficou comigo um bom tempo. Mas eu preciso saber que tem pessoas que dependem de mim. Eu carrego pessoas comigo.

Quais são as últimas lembranças que você têm daquele avião?

A gente saindo da Bolívia, trocando de lugar, alguns flashes vêm na minha cabeça. De acordo com o que o Neto e Follmann falam, vêm algumas lembranças. Algumas estão bloqueadas, e eu realmente não procuro lembrar. Tento ficar com as lembranças que tinha antes, dos momentos alegres.

Você disse uma vez que nessas trocas de lugar o Follmann o chamou para se sentar com ele. O quanto isso foi crucial para salvar sua vida?

Acho que ali foi Deus usando o Follmann para salvar a minha vida. A gente não sabe o que teria acontecido se eu não tivesse sentado lá no fundo. Mas acho que foram planos de Deus. Tudo na vida tem um por que e um para quê. igualmente não questiono Deus por que fui eu que sobrevivi, o Follmann, o Neto. Eu falo que a gente tem que transformar esse por que em para quê. A gente ficou por alguma coisa . E o resto a gente vai vendo e pesquisando com o tempo.

Sua consciência do acidente então só se deu no hospital?

Sim. Eu não sabia o que tinha acontecido, e aos poucos foram me contando.

E como você reagiu à possibilidade de não andar?

Quando acordei, os médicos falaram que eu tinha uma lesão muito grave na coluna, mas o risco de não andar já estava descartado. Mas não me importava se eu voltaria a jogar ou não. Queria poder caminhar e levar uma vida como qualquer outra pessoa. Só o fato de ter sobrevivido já era uma vitória, um grande milagre. Com o passar do tempo eu vi que eu poderia voltar a jogar, e voltei em alto nível.

Quanto tempo levou para você sentir que estava preparado?

Depois do sétimo mês. Vi que eu estava apto a competir de novo, mas esperamos o momento certo, que veio com um jogo- treino contra o Ipiranga, de Erechim, e depois veio o amistoso com o Barcelona, de que participei por 40 minutos, e contra a Roma, quando marquei um gol. Depois, joguei contra o Flamengo e tive uma boa atuação – fui um dos melhores do time. Permaneci titular da equipe.

O que representou marcar esse gol em Roma?

Acho que está sendo um ano de renascimento para mim. Fazer aquele gol foi um jeito de homenagear as pessoas que não estão mais comigo. Acho que elas me acompanham. Enquanto o Neto não volta, eu vou realizando o sonho deles de continuar a jogar.

Em maio, você, Follmann, Neto e (o jornalista Rafael) Henzel foram ao local do acidente. Como foi pisar ali?

Eu quis ir mais por curiosidade. Não foi algo que me deixou muito feliz ou me trouxe um alívio. Foi pesado ir lá. Não quero voltar nunca mais. À Colômbia, quero voltar, sim. Quero abraçar os médicos, os enfermeiros, o pessoal que participou do resgate… Eles têm minha eterna gratidão.

O que mudou após o acidente?

A gente encara a vida de outra forma. Difícil tu não encarar a vida diferente, é inevitável. Eu procuro aproveitar melhor as coisas. Às vezes, eu vinha só para treinar. Hoje, não. Procuro aproveitar ao máximo, desfrutar, uma vez que eu poderia não estar jogando mais. Quando a gente chega perto da morte, passa a dar valor às mínimas coisas. Muitas vezes eu via a família só no fim do ano, via pai e mãe só nas férias. Hoje, procuro trazê-los sempre que posso, uma vez que nunca sabemos o dia de amanhã.

Recentemente, o Ramon, lateral do Vasco, sofreu uma lesão no joelho e citou você como um exemplo de superação. Como você recebe esse tipo de mensagem?

Isso deixa a gente muito feliz. Que bom que consigo agregar isso às pessoas.

Como foi voltar a treinar e não ter o Danilo, o Follmann, ter uma equipe nova, uma diretoria nova…?

Foi difícil. Na primeira vez em que fui me tratar no estádio, vi que não iria mais encontrar as pessoas do dia a dia. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Mas eu procurei pedir a Deus discernimento para entender melhor as coisas e ficar com as coisas boas que eles deixaram.

Você ficou mais próximo do Follmann após a tragédia? E do Neto?

Eu e Neto nos aproximamos muito após o acidente. Com o Follmann, eu já tinha uma amizade fora dos gramados. Então é inevitável se aproximar ainda mais.

Pretende lançar um livro contando essa história?

Não pensei nisso além disso, mas acredito que futuramente sim. Porque é uma história bonita, além disso mais a de quem voltou a jogar. Vou esperar um pouco, ver até onde minha vida no futebol vai.

E quanto ao futuro? Seu contrato com o Internacional, que o emprestou à Chapecoense, termina este ano.

Temos algumas coisas engatilhadas para ficar aqui. Mas eu não quero piedade de ninguém. Sou um atleta profissional. Se tiver alguma oportunidade melhor no mercado, é claro que eu vou pensar na minha família igualmente. Mas acho que seria legal para mim e para o Clube essa permanência.

E outros planos?

Eu vou me casar agora em dezembro. Estou com coisas boas pela frente.

Você falou antes das cicatrizes que carrega. Qual a que é mais dolorosa ?

A da alma. A cicatriz da alma é a que mais dói. E essa eu vou carregar para sempre.

https://oglobo.globo.com/esportes/a-cicatriz-da-alma-a-que-mais-doi-22114927


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Comentários:
9
  • Guilherme Gonçalves Costa disse:

    Vida e morte andam de mãos dadas nesse mundo. Se completam e são necessárias pra renovação. Mas ver um depoimento como o deste jogador, é sempre muito emocionante. Quando se chega tão próximo da morte, e se consegue “enganá-la” por mais alguns anos, realmente, é difícil que não haja uma profunda mudança de mentalidade no sujeito. É bacana demais ver um um homem totalmente desprovido de arrogância, tendo plena consciência da sua pequenez, da sua fragilidade e da sua insignificância para o mundo. Boa sorte ao Allan.

  • Alexandre Bertoldo disse:

    Chico, desculpe postar uma pergunta nos comentários deste post que, na minha opinião, merece todo carinho e atenção pelo ocorrido há um ano trás. Mas acabo ler uma matéria o site Globoesporte dando conta que o “futuro diretor” Alexandre Gallo acaba de fazer uma reunião com o representante do Remo-PA fechando uma parceria entre as duas agremiações. Pois bem, desde que foi anunciado como futuro membro da nova diretoria atleticana, caso seja confirmada sua eleição, Gallo vem participando intensamente na vida diária do Atlético. Por mim, sinceramente, tudo bem, já que a história recente mostra que desde que o Kalil assumiu a presidência do clube só tivemos conquistas importantes dentro e fora do campo. Mas fica uma pulga atrás da orelha: será que essa atitude poderá ser questionada no futuro? Seria, de fato, ético da atual e provável futura diretoria permitir esse tipo de coisa? Isso não dará margem para discussões, processos, apelações, etc., por parte de uma oposição dentro do clube?

  • Regi.Galo/BH disse:

    “A cicatriz da alma é a que mais dói.”

    Esse é mais um daqueles exemplos do quanto se faz necessário experimentar a vida sob prismas diferentes. Não há como afirmar quem esteja certo ou quem esteja errado: a arte de viver é compreender que a vida vai ter sempre que escolher um caminho.

    Quantos ‘aviões da Chapecoense’ estão caindo todos os dias, por todos os lados, neste mundo desalmado, desumano e desigual? Como medir a dor que necessariamente deveria machucar a nossa alma?

    Cada vez mais distante da frase em destaque, a dor mais dolorosa já não está atingindo o lugar certo: ou estamos criando certas imunidades ao sofrimento; ou, provavelmente, com o excesso de cicatrizes, já tenhamos as nossas almas necrosadas.

    • José Eduardo Barata disse:

      REGI.GALO ,
      relendo aqui os comentários me lembrei do
      Augusto Cury que diz que estamos , nos dias
      atuais , psico-adaptados a tudo de nefasto que
      nos atinge.

      • Regi.Galo/BH disse:

        Mas, não é verdade, Barata!
        Haja vista a extrema aceitação e conformação com os tantos absurdos cotidianos.
        A alienação está finalmente nos dominando por completo. Ao mesmo tempo em que Karl Marx está provocando terremotos em seu túmulo.

    • Luiz Ibirité disse:

      Realmente o depoimento é muito emocionante, e vc meu caro REGI.GALO/BH, foi de uma felicidade ímpar no seu arremate, simplesmente maravilhoso, são reflexões como esta que me fazem frequentar este espaço aqui do Chico Maia.

    • José Eduardo Barata disse:

      REGI.GALO ,
      ponha seu último parágrafo num mural .

    • Claytinho do Nova Vista - BH disse:

      Grande Regi.Galo/BH,

      Tentei buscar algum elogio para esse seu texto, mas minha limitação de vocabulário não permitiu. Então, receba o meu simples, porém sincero, parabénssssss !!!
      Em que pese a dureza e frieza dos tempos atuais, reflexões como esta sua nos ajudam a desintoxicar…

      Abraços

      • Regi.Galo/BH disse:

        O que é isto? É muita bondade junta.
        Só posso agradecer aos mestres Barata, Claytinho e Luiz Ibirité pela menção.
        Afinal, vindo de tais referências, é de uma satisfação enorme poder compartilhar algo que possa ter alguma utilidade.
        Abraço!