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Patroa do Fred Melo Paiva fez a cirurgia e está bem; o grande jornalista manifesta a sua gratidão

Tive o prazer e honra de conhecer a Fabi em Caraíva, Sul da Bahia, dois anos atrás. E por mais incrível que pareça, foi também o meu primeiro contato pessoal com o Fred Melo Paiva, com quem sempre tive sintonia jornalística e amigos em comum. Além de fã do trabalho dele na TV, jornais, revistas e internet.

Numa dessas coincidências da vida, fui recebido por eles, na casa da família, nessa praia baiana, um dos lugares mais apreciados do mundo. E o filho deles se chama, Francisco, um quase pré-adolescente, de ótimo astral, como o pai e a mãe.

À esquerda, Fidel, o pastor protetor da casa deles.

Lamentavelmente, no fim de 2019, eles foram atropelados por uma dessas circunstâncias da vida, da qual todos nós estamos sujeitos. Iniciou-se uma drama, tornado público pelo próprio Fred na coluna dele no Estado de Minas, que boa parte do país vem acompanhando.

A Fabi passou por uma feliz cirurgia esta semana, e a história toda é contada pelo Fred, na coluna de sexta-feira, 17, e numa das primeiras de 2020, em janeiro, quando o problema começou:

* “Obrigado, Atleticano, mas muito obrigado mesmo – Para além do dinheiro, fomos abraçados por um tsunami de amor e solidariedade, das coisas mais bonitas que vivi na vida”

Em 2013, decidi reunir em livro as colunas originalmente publicadas neste espaço. O projeto começou ainda na fase de grupos da Libertadores, com o apoio imprescindível do então diretor do Atlético Rodolfo Gropen e, depois, de Alexandre Kalil. Não importava se seríamos ou não campeões, sairia de qualquer maneira, como celebração do “título impossível” ou como aquilo que de fato é — uma sociologia de botequim sobre o atleticano.

Em caso de derrota, chamaria apenas “Atleticano”, palavra comum a todos os textos que eu havia escrito nos dois anos anteriores, uma obsessiva brincadeira a que me dediquei secretamente sem jamais falhar. Para a eventualidade da conquista, chupinharia o nome do filme italiano A classe operária vai ao paraíso, adaptando-o ao nosso sentimento de subir às nuvens depois de 42 anos de injustiças e azares monumentais: “O atleticano vai ao paraíso”. (A frase continha, ainda, uma bem-vinda mistura de Galo com Deus, pecado que cometi reiteradas vezes em minhas escrituras, embora ateu, apenas devoto de São Víctor.)

O livro estava pronto quando o Galo avançava perigosamente rumo ao título. Pedi que a diretora de arte, Renata Zincone, providenciasse ambas as capas, a da derrota e a da vitória. Ela recorreu a preceitos budistas para negar-se a fazer a capa da derrota. Da minha parte, expliquei a ela que os deuses do futebol puniam com rigor os que cantavam a vitória antecipada, de modo que, a despeito de Buda, o negócio era produzir ambas. Ela jamais desenhou a capa da derrota. Escreveu “O atleticano vai ao paraíso” no formato de uma cruz, e eu, torcendo para que os deuses tivessem cuidando de assuntos mais importantes, botei o subtítulo: “Do quase rebaixamento ao título impossível”. O Galo ia perder, eu sabia, e a culpa era minha.

Bem, foi o que foi. O atleticano foi ao paraíso. Escrevi do celular, na arquibancada do Mineirão, a crônica derradeira, entre lágrimas e aquilo que me pareceu um descarrego de igreja evangélica. O livro foi para o prelo, a fila dobrou o quarteirão de Lourdes quando foi lançado, um cruzeirense comprou oito de uma vez (que vontade de gritar Galo!), um atleticano octagenário esperou a sua vez para levantar a manga da camisa e me mostrar os dois palmos de uma tatuagem da taça da Liberta em seu braço esquerdo. Aquilo não era uma fila, era o manicômio onde todos nós nos encontrávamos internados naquele inesquecível ano de 2013, tão doido que fomos acabá-lo em Marrakech.

Em 2017, retirei de circulação os últimos 300 exemplares de O atleticano vai ao paraíso. Imaginava usar o reparte final para pagar a conta de um processo movido contra mim pelo então senador Zezé Perrella. Condenado em primeira instância por relacionar a pessoa a certo helicóptero e certa substância, a capa da vitória poderia, senão me salvar da derrota, pelo menos livrar o meu cheque especial. O paraíso estaria para sempre perdido, mas pelo menos não haveria a manchete “O atleticano vai para a cadeia”.

Um livro, no entanto, tem vida própria. E “O atleticano…” se recusou a terminar seus dias na conta do Perrella. Os últimos 300 foram postos à venda numa campanha desencadeada por Afonso Borges, o idealizador do Projeto Sempre Um Papo, para que eu e minha família pudéssemos arcar com o aperto que advém do tratamento de saúde da minha companheira, Fabi, diagnosticada com um glioblastoma em 31 de dezembro do ano passado. Os livros se esgotaram em 24 horas. Não sei como agradecer o gesto do Afonso, daqueles que divulgaram sua iniciativa e de todos os que compraram.

Para além do dinheiro, fomos abraçados por um tsunami de amor e solidariedade, das coisas mais bonitas que vivi na vida. Amigos de infância, velhos colegas de redação da velha Playboy, gente que pensa igual e diferente de mim, cruzeirenses, americanos e até o presidente Sérgio Sette Câmara, a quem tantas vezes critiquei, tornaram verdade verdadeira o clássico “não é só futebol”. Atleticanos anônimos escreveram centenas de mensagens. Uma maioria delas recorreu ao mantra de 2013, quando tudo começou: “Eu acredito!”. O Galo é amor, né.

Fabi foi operada na quarta-feira e passa muito bem. Fiquei vestido de Atlético na ante-sala de cirurgia, como aqueles patetas que botam a camisa do time nas horas mais inadequadas. Eu tava sozinho por causa da COVID-19. Mas tinha milhões de pessoas comigo e com ela. Muito, mas muito obrigado mesmo. Eu acredito!

– – –

* “Feliz ano velho”

No sofá, ela escutou atenta o gol contra o Uberlândia enquanto eu aguardava do outro lado do fone de ouvido. ‘É bom ouvir um gol do Galo, né?’, comentei

Em 31 de dezembro, há 26 dias, ela foi diagnosticada com um câncer. Eu olhei a ressonância, havia um círculo, vertiginoso, no lóbulo frontal direito. Do tamanho de um limão. Ela ficou na UTI do hospital, eu dirigi pela cidade vazia até um Íbis que localizei no Google. Esperei por 30 minutos até que pudesse conseguir um quarto. No lobby do hotel, uma festa de réveillon se desenrolava. Entre a tarde daquele dia e a noite do diagnóstico, meu castelo ruiu. Como no passe de uma mágica macabra, deixei de pertencer àquele mundo, um zumbi desconvidado para a passagem do ano.

Há 26 dias, alterno entre o desespero total e a força saída não sei de onde. Me ocorre a perfeição do ser humano, ainda que diante da tragédia dessa máquina pifada. A gente se ajusta, o coração volta a bater suave, a alegria te colhe na mais absoluta improbabilidade, o sono, uma noite, acaba por ninar seus pesadelos, vencidos por uma paz que você imaginava (imagina) para sempre perdida, no passado e no futuro.

Tudo, no entanto, é traição. De repente, a noite torna-se de uma melancolia cortante. Te assalta o pensamento no seu filho pequeno, nas viagens que você fez e naquelas que você não fez. Os planos, os projetos. A ideia da morte a acercar-se, tão injusta e precoce, tão doída. E então, de novo, você retorna à condição do zumbi, arrasta-se, mergulha no poço escuro e sem fundo. Lamenta a inexistência de Deus: somos nós com a gente mesmo, fodeu.

Na terça-feira passada, ela voltou para casa. Frágil, tadinha, precisa reaprender a andar. Espera-se que o cérebro, por ele mesmo, corrija o déficit que ficou em sua visão periférica, o que a faz trombar nas coisas, desajeitada. Em duas semanas, ela começará o tratamento. Até lá, viveremos em paz, na guerra contra os pensamentos sombrios, o diabo a nos cutucar com o tridente.

Ela voltou pra casa e sentou-se no sofá. Nesses dias intermináveis, me lembrei de um amigo querido vítima de ELA. Diagnosticado com a terrível doença degenerativa, não quis viajar para onde nunca fora, não quis, sei lá, saltar de paraquedas — quis estar em casa, entre os seus, comendo nos velhos restaurantes, escrevendo suas velhas laudas de um velho jornalismo.

Ela queria, no máximo, um banho de mar. Eu sonhava estar com ela naquele sofá, assistindo a mais um tedioso filme infantil com ela e o Francisco, na luta contra o sono, implacável. Numa conversa no hospital, sonhamos juntos o comezinho da vida. Éramos felizes e sabíamos, mas não sabíamos que éramos tão felizes. Feliz ano velho.

Ela se sentou no sofá e eu coloquei meus fones de ouvido. Achei um disparate ligar a tevê no jogo do Galo, ainda que o primeiro do ano. Ouvi pelo rádio, apenas um fone no ouvido direito, o esquerdo reservado para alguma demanda, o remédio, a caminhada até o banheiro. A peleja soava aos meus ouvidos — ao meu ouvido, digo — de desimportância colossal. Agora tinha um Allan, um Hyoran, um Dudamel, o Gabriel tinha voltado. Não havia Luan, não havia Leo Silva. O Caixa me informava sobre um mundo novo do qual eu me apartara no lusco-fusco de 2019.

Ela estava no sofá, ainda, quando o juiz apitou o pênalti. Apenas informei o Francisco sobre o ocorrido. Ficamos em silêncio. Fábio Santos bateu e fez. Eu tirei o meu fone de ouvido e passei a ela. O grito de gol, o hino tocando no fundo. Ela nunca foi de futebol. No primeiro carnaval que passamos juntos, eu levei para o Rio de Janeiro uma crista de Galo que antigamente se vendia na sede de Lourdes. Volta e meia alguém me dirigia o grito monumental, aquele que tece as nossas manhãs desde sempre: “Gaaaaaaalo”.

Ela, filha de um inglês cuja família tinha preferência pelo críquete, não sabia do que se tratava aquela estranha correspondência entre espécimes de uma fauna misteriosa. Foi a primeira vez que expliquei a ela sobre o Atlético – o Galo. Com o passar dos anos, era o Atlético que me explicava. Eu era o Atlético, seus azares e sua paixão. E ela entendeu tudo. E viu comigo cada vitória do Galo na série B (e como eu chorava), e celebrou como um de nós a Libertadores de 2013, devota de São Victor.

No sofá, ela escutou atenta o gol contra o Uberlândia enquanto eu aguardava do outro lado do fone de ouvido. “É bom ouvir um gol do Galo, né?”, comentei, como a relembrar a nossa conversa, o comezinho da vida. Um gol como tantos outros, o milésimo de Pelé em sua forma mais banal possível. E eu fui chorar escondido no banheiro a beleza de estarmos vivos para ouvir aquilo.

Te amo, Fabi.


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Comentários:
4
  • Guilherme Leôncio disse:

    Não consigo entender o Galo, comprar goleiro se já tem o Rafael. Li reportagem do interesse por Balotelli, só pode ser marketing, deve valer uma fortuna e só sabe criar problemas. Tem outros mais baratos e menos problemático. Já não entendi a presença do Nathan que até hoje é cheio de altos e baixos.

  • Vinicius disse:

    ESPETACULAR!
    FORÇA FRED!
    PARABÉNS CHICO!

  • Luiz Ibirité disse:

    Força e boa recuperação a todos da familia, pq sabemos q esta doença atinge de todas as formas.

  • Julio Cesar disse:

    Esperemos e torcemos pela cura da mulher do Fred Melo Paiva.
    Somos “Os Infiltrados” na corrente do bem pela cura.
    Lembremos D. Miguelina!
    Off Topic1: recomendo crônica do Julio Gomes no UOL ontem.
    2: que “onda” é essa do Sampaoli em relação a goleiro.
    Depois de longo período de treino vimos o Atlético com problemas na marcação.
    Pra isso servem os treinos e foram vários.
    Jogo treino foi só um e nos baseamos por ele.