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De contrato renovado e na expectativa de ser campeão, ótima entrevista do Lisca

Foto: Mourão Panda/América

Que o ataque volte a fazer gols, que o time todo volte a jogar determinado e solidário esta noite, 21h30, contra o Avaí, no Independência. Precisa vencer bem, por placar que o mantenha na frente em número de gols que a Chapecoense, que jogará em casa, no mesmo horário, contra o Confiança. Em caso de empate em todos os primeiros critérios, o título vai para quem tiver menos cartões vermelhos, depois amarelos e até sorteio.

O técnico Lisca bateu um papo muito legal com o Guilherme Frossard, no Globoesporte.com. Entrevista longa, mas vale demais a pena ler ou assistir:

* “Muito Lisca, pouco Doido”

Técnico supera personagem e alcança novo patamar com o América-MG: “Chegou a hora de ganhar seis dígitos”

Era um sábado de lazer na casa da família De Lorenzi, na região da Pampulha, em Belo Horizonte. Como um bom gaúcho, Lisca assava uma carne na companhia da esposa Danielle, das filhas Giovanna e Antônia, da mãe Ana Maria, do irmão Jorge, do sobrinho Matheus e do auxiliar Márcio Hann. Recebeu o ge para um bate-papo, não sem antes oferecer o churrasco que comprou após indicação do goleiro Everson, do Atlético-MG, um dos vários amigos que fez no futebol.

Na televisão, duelo de dois times de meio de tabela no Campeonato Inglês, sucedido por um jogo de mesmo nível do Espanhol. Quando questionado sobre quanto acompanha futebol, Lisca diz que assiste oito jogos por semana. Minutos depois, informalmente, Dani denuncia: o marido fez conta errada, e, às vezes, são oito em um só dia.

Carne de primeira na churrasqueira, piscina grande para as crianças, campinho para bater bola, conforto para a família. A casa é de alto padrão, mas não foi esse o padrão de sempre. Apesar de vir de família “abastada”, como ele mesmo define, Lisca faz questão de destacar que nunca morou em um lugar assim.

Saiu de casa muito cedo, aos 17, e nunca teve dinheiro fácil dado pelos pais – Paulo Roberto, o pai, veterinário; Ana Maria, a mãe, cerimonialista. Teve que correr atrás. E, após trinta anos de futebol, entende que está pronto para alcançar um novo patamar. “Chegou a hora de ganhar seis dígitos”, brinca.

Na temporada em que chegou à semifinal da Copa do Brasil, o América-MG anunciou na última quarta-feira a renovação com o treinador até o fim de 2021. Se cumprir todo o contrato, Lisca alcançará o trabalho mais longevo de sua carreira. Antes de pensar no futuro, porém, o técnico pode “encerrar 2020” nesta sexta com o título mais importante da vida dele no futebol, a Série B pelo Coelho.

No passado, centroavante

Luiz Carlos Cirne Lima de Lorenzi tem o esporte no DNA. Lisca é bisneto de Carlos de Lorenzi e neto de Jorge de Lorenzi – ambos foram goleiros do Internacional. Na infância e adolescência, era esportista convicto. Jogou vôlei, basquete, nadou, foi surfista e, claro, jogou futebol. Chegou até os juniores do Colorado.

– Eu era um jogador bem cerebral. Aquele centroavante que saía para articular, organizar, eu já tinha essa compreensão tática do jogo. Acho que se tivesse investido um pouco mais eu teria condição de ter feito uma boa carreira.

Não investiu tanto. Aos 17, ao terminar o segundo grau, optou pela faculdade de educação física. E teve o privilégio que pouquíssimos estudantes têm: conseguiu um estágio, já no futebol, antes mesmo de pisar na sala de aula pela primeira vez.

– Meu ex-treinador de natação dava aula nas escolinhas do Inter. E ele ficou sabendo, através do meu pai (que eu faria Educação Física). Ele me ligou e perguntou: “Você não quer fazer um estágio aqui?”. Isso antes de eu começar a faculdade. Eu tinha 17 anos.

Depois do estágio, foi contratado pelo Inter em 1989, quando já cursava Educação Física. Foi monitor das escolinhas de futebol do clube, começando a trabalhar com garotos de 11 anos.

– Eu me apaixonei de cara. Mudou minha vida pessoal, paradigmas, preconceitos. Convivia com vários tipos de pessoas, classes, com a realidade do povo brasileiro. O futebol me mostrou isso. Aí comecei. No primeiro torneio, fui campeão, fiz uma final eu contra eu mesmo. “Acho que tenho jeito pra isso aqui”. Comecei a me dedicar, esforçar, estudar muito. E fui progredindo. Infantil, mirim, juvenil, júnior, time B. Estive na base do Fluminense, do Grêmio, do Juventude. Aí, em 2004 e 2005, eu tomei a decisão de tentar ser treinador profissional.

Começou a “roer o osso”. O churrasco de primeira que Lisca aprecia hoje com a família, comemorando o acesso antecipado do América-MG à Série A, chegou depois de muito perrengue. Ele já tem trabalhos relevantes em clubes importantes como Ceará, Guarani, Paraná, Juventude e Náutico, mas rodou muito até atingir a segunda prateleira do futebol brasileiro (e se credenciar a saltar para a primeira).

– Tem tanta coisa… Mas costumo dizer que é minha faculdade, meu aprendizado. Com 17 anos, comecei como treinador. A maioria das pessoas estava se formando como jogador, e eu como treinador. Passando por todas as categorias e por todos os estágios. Série D, Série C, interior, Ipitanga da Bahia, Brasil de Pelotas, Brasil de Farroupilha. Já vi muita coisa. Você não tem como provar, mas eu já vi jogador que eu desconfiei muito que estava acomunado com o adversário. Já vi clube que não tinha a menor condição de trabalho, que os jogadores eram heróis, pra tentar algum espaço na vida, que estavam ali praticamente pela comida e pela oportunidade.

– Isso vai fortalecendo, dando experiência, experimentação. Sou muito agradecido por ter passado por tudo isso. Quando você chega nos momentos como estou chegando agora, é isso que deixa fortalecido e com confiança. Não caí de paraquedas. Você construiu, andou uma grande estrada para poder, depois de 30 anos, trabalhar em um clube como o América, ser protagonista de uma Série B, ter trabalhado num Ceará, Guarani. É um orgulho. Orgulho por começar do nada. Toda essa história e esse caminho me deram o conhecimento e a experiência pra chegar neste momento. Estilo sincerão

Não há como negar que Lisca já tem “chão” e bons trabalhos para se credenciar a figurar entre os principais treinadores do país. No Brasil, por outro lado, há atalhos. Ter sido jogador profissional com grande carreira, por exemplo, é um deles. No estilo sincero de sempre, o gaúcho reflete sobre o caminho mais curto que alguns treinadores chegam a grandes clubes.

– O ex-jogador já larga na frente. No Brasil, se valoriza muito a experiência de dentro do campo, e não tanto a parte teórica, fundamental, específica, teórica. A faculdade de educação física dá isso. Tenho visto alguns ex-jogadores assumindo função de coordenação, coordenação de categorias de base, sem nunca ter tido uma experiência de formação, ter treinado, trabalhado. Qual é a didática desse profissional? Qual o conteúdo? Qual é a metodologia? No Brasil, isso é pouco fomentado. É mais falado o passado, o que o treinador-jogador conquistou, mas muito ainda como jogador. Tem um ditado um pouco pesado, mas já me falaram: “Já viu cavalo virar jóquei?”. No futebol, muitas vezes acontece. É muito diferente ser comandado e ser comandante.

Essa cultura permite que profissionais não tão preparados assumam cargos relevantes em clubes tradicionais? A resposta está na ponta da língua.

– Tem vários. Não é (profissional) ruim, mas é aquele cara que não tem muita experiência e que sai lá na frente. Tem os queridinhos da imprensa, os caras que são superprotegidos, dificilmente têm uma crítica. A gente sabe que tem muitas pessoas que são mais protegidas, mas por mérito deles também, pela história que conquistaram. E a gente tem que trabalhar com isso, saber disso e tentar buscar nossos espaços. E não ficar com inveja disso. Não tenho muita inveja disso, não. Mas sem dúvida, internamente, muitas vezes eu olho e digo: “Pô, esse cara é favorecido, o pessoal pega mais leve”. Mas isso é em todas as áreas. Temos que saber administrar.

A treta e a mágoa

A carreira longa, aliada ao estilo irreverente, agitado e sincero fez Lisca colecionar amigos no mundo da bola. Durante o papo, impressiona: não há um clube brasileiro citado por ele que não tenha uma referência mencionada em tom de intimidade. Do preparador físico ao atacante, do líder da Série A ao lanterna da Série C, Lisca conhece quase todo mundo. E, claro, não se deu bem com todos. Houve desentendimentos, e o caso mais famoso aconteceu em Curitiba.

Ele treinava o Paraná em 2017 e, de acordo com sua versão, foi boicotado por um grupo de pessoas. Chegou a ter uma séria discussão com o então auxiliar Matheus Costa (hoje técnico do Operário-PR). O Paraná demitiu Lisca, naquela ocasião, alegando que houve uma agressão – o que o técnico nega. O episódio foi superado, as partes chegaram a um acordo, os valores da rescisão já foram acertados, mas ainda há, indiscutivelmente, um tom de mágoa – e de busca por revanche – nas declarações do treinador sobre o assunto.

– Cinco pessoas se juntaram, decidiram que o holofote estava muito em cima de mim, que as glórias estavam muito em mim, e resolveram me tirar e tocar o processo. E acabou dando certo, porque todos eles cresceram na profissão. O Paraná acabou subindo.

“Em contrapartida, nesse ano (de 2020) eu joguei (contra) um por um deles e ganhei de todos. Um por um. E nunca mais vou perder pra eles. Pode escrever. Aqui, está na matéria. Vocês, que estavam envolvidos, podem vir quanto (quiserem), eu vou ganhar toda a vida de vocês. Pode ter certeza. Deus é justo”.

A fama de “doido”, ciúmes, prós e contras

Lisca aponta que houve ciúme no episódio do Paraná. Mas não só lá. Já percebeu pessoas incomodadas com o foco voltado para ele em outros clubes. A fama de “doido”, que surgiu quando era treinador do Juventude, veio principalmente em função da forte relação que ele costuma ter com o torcedor. Anos depois, a avaliação é que o apelido trouxe aproximação com o “povão”, mas fechou portas.

– Tem os dois lados, o positivo e o negativo. O positivo é a aproximação com o público, com o povo, com as crianças, e aí é muito legal. Futebol é entretenimento, e o personagem traz isso. Mas tem um outro lado, que é muito mais com os diretores, presidentes, executivos. Eles ficam meio assim, né? Não me conhecem. “Pô, mas doido?”. É pejorativo. E fica muito fácil pra criar uma polêmica também, isso já aconteceu comigo algumas vezes.

– (O apelido) mais me atrapalhou (que ajudou), por essa questão de perfil para clube, presidentes, executivos que me conheciam. Muitas vezes a minha oportunidade foi travada por causa disso. Até pessoas que iam me dar oportunidade já me falaram isso. Então, acho que mais me atrapalhou na sequência de carreira, mas me ajudou muito na identificação com o público.

Luiz Carlos, no fundo, tem muito pouco de doido. Mas é muito Lisca. O estilo nas entrevistas coletivas e no dia a dia do América-MG é muito parecido com o perfil na rotina em família. A reflexão sobre os prós e contras do apelido, por exemplo, orienta o treinador em atitudes que podem fazer bem à carreira, mas não fazem ele sequer cogitar adotar um estilo mais frio, menos envolvido. “A vida é uma só” é um lema levado ao pé da letra.

– Costumo falar aos meus jogadores: a gente só começa a aproveitar a vida quando aceita a morte. Isso é uma grande verdade, é um ensinamento budista. Eu não sou muito religioso, mas procuro ler um pouco de cada situação. E é isso que eu tento levar para minha vida: aproveitar ao máximo os momentos. Talvez as pessoas não entendam (meu jeito). Cara, quando você ganha um jogo, a torcida está ali, trocar energia não tem preço. E eu não sei se amanhã vou conseguir fazer isso, ou depois de amanhã. Eu não sei quanto tempo vou durar aqui. Costumo falar isso aos jogadores, porque aí você começa a valorizar as pequenas coisas. Um churrasco com a família, uma pelada com as minhas filhas, um jogo, um banho de piscina, uma corrida na Pampulha, um passeio com meu cachorro, um amanhecer, um pôr do sol.

– Aproveita, gente, que a vida passa muito rápido. Eu já estou com quase 50 anos. Há pouco tempo eu era um menino de 18, com a vida inteira (pela frente). Hoje, já passei mais pra lá do que pra cá, e ainda com vida de treinador. Imagina… Daqui a pouco me dá um treco, e aí? O Adilson (Batista) agora, recentemente, olha aí (sofreu um infarto). Muricy já teve, Telê… Tem vários.

“Procuro colocar para fora. Tem muitas pessoas que seguram, não falam, não transmitem energia e sentimento, e acabam tendo um troço. A minha filosofia de vida é essa. Aproveitem ao máximo, porque o tempo passa rápido, e a vida é trem bala, parceiro, como já dizia aquela música”.

Coruja, ‘workaholic’ e ansioso

A ideia de aproveitar intensamente cada momento reflete na agenda de Lisca. Ele defende a tese que treinador trabalha quase 24h por dia. E menciona a figura de Marcus Salum, presidente do América-MG, como um grande parceiro justamente por isso: os dois são viciados em trabalho. O cartola, que defende que Lisca levou o América “a um outro patamar”, concorda.

– A afinidade que eu tive com o Lisca foi diferente. Tive boas parcerias com treinadores, mas com o Lisca tem um dado a mais. Somos “workaholic”. A gente pensa 24h no assunto, quer ganhar o tempo todo e tem uma ideia parecida. Eu o convenci de que ele precisava fazer um projeto, deixar a fama de “Lisca Doido”, deixar de ficar salvando time caindo, fazer um trabalho de consistência. Ele comprou a ideia e deu certo, logicamente os laços se apertaram mais. Fico muito feliz.

A rotina de Lisca começa cedo. Muito cedo. Antes do sol raiar, o treinador está acordado, aproveitando o silêncio de casa pra se preparar.

– Eu trabalho muito de madrugada. Gosto de acordar 4h30, quando as meninas estão dormindo. Acordo 4h30, 5h, e aí me dedico até umas 7h30, 8h a trabalhar. Preparar o treino, olhar o último jogo, olhar o adversário, olhar alguma coisa que estou interessado. É a hora que eu mais rendo. Desde menino foi assim. Gostava de estudar assim também quando estava na escola. Acordava 4h, estudava até as 7h e ia pra aula. Parece que a coisa já estava mais fresca. É um horário que eu gosto muito. Vejo muito jogo, leio muito, gosto de ler muito. Trabalho quase o tempo todo. Vida de treinador envolve muito trabalho fora do clube. Você não para.

O ritmo alucinante e a pressão por resultados geram ansiedade. Já são 30 anos de estrada, mas Lisca ainda tem dificuldades para controlar as emoções antes das partidas. O corpo responde, reclama. Ele diz que está melhorando, mas reconhece que ainda há muito a evoluir.

– É difícil, cara. Não é fácil. Esses momentos antes de jogo, para treinador… Uma vez, eu pensei até em fazer uma pesquisa sobre o que cada um faz. Na véspera, em casa, naqueles momentos no vestiário. É angustiante. Mas eu sou assim: jogo grande, jogo contra adversário forte, estou tranquilo. É impressionante. Durmo legal, como legal, não tenho tanta ansiedade. Gosto desses momentos, gosto de ser desafiado. Mas quando é contra time menor, pequeno, meu Deus do céu. Eu não durmo, eu não como, eu vomito antes do jogo, várias vezes. As pessoas ficam de vez em quando até assustadas. Mas é um hábito. Eu falo, eu grito, eu vou na roda (dos atletas), aí saio pro meu banheiro e “uáaaa”. E aí eu volto zero bala.

– Estou tentando melhorar, porque também não posso agredir muito minha saúde. E a profissão de treinador agride demais a saúde, algumas vezes passa do ponto, e a gente tem que ter cuidado. Preciso curtir um pouco mais também a profissão e as coisas boas que ela traz pra gente, e não ficar preso nessa montanha-russa emocional de perder, ganhar, empatar. Futebol é muito mais que isso, e estou tentando levar por esse lado cada vez mais.

Técnicos estrangeiros e moral com gigantes

A excelente temporada 2020 no comando do América-MG deu a Lisca uma grande projeção no cenário do futebol nacional. Também fez com que ele tivesse experiências antes inimagináveis. Foi entrevistado por Zico, seu ídolo de juventude. Recebeu um telefonema de Rivelino, outro de Clodoaldo. Viu uma entrevista em que Vanderlei Luxemburgo o definiu como melhor técnico em atividade no país.

Ele, inclusive, mostra um lado modesto ao comentar a declaração de Luxa. Diz que há vários ótimos trabalhos na atual temporada do país e cita Cuca, Abel Braga, Guto Ferreira, Umberto Louzer e Péricles Chamusca.

– Tive a oportunidade de jogar contra o Vanderlei em 2013. Eu estava no Juventude, ele no Grêmio. Fizemos a semifinal do Gauchão, e nós ganhamos nos pênaltis. Acho que talvez ele lembrou disso um pouco também. Mas a gente vem há anos trabalhando, eu acho muito legal o elogio, mas eu não acho (que meu trabalho é) o melhor. Acho que tem vários melhores esse ano no Brasil, treinadores que estão fazendo ótimos trabalhos. Acho difícil falar que o do Lisca é o melhor.

Outro gigante elogiou publicamente o trabalho de Lisca: Tostão. Em uma coluna, o ex-craque fez uma observação: se fosse “el loco Lisca”, estrangeiro, teria mais espaço no mercado. Será?

Fato é que o momento de alta de treinadores gringos no país não incomoda Lisca. Pelo contrário. Ele se declara fã, por exemplo, de Jorge Sampaoli, comandante do Atlético-MG e, na opinião de Lisca, um dos três melhores técnicos em atividade no Brasil, ao lado de Guto Ferreira, do Ceará, e Umberto Louzer, da Chapecoense.

– Sobre treinadores estrangeiros, vou dizer que não incomoda em nada. Pelo contrário. Acho muito legal. O mundo hoje está globalizado. Como vamos fugir disso? E o mercado brasileiro é muito atrativo. É um mercado que paga bem, vamos ser sinceros. Treinador de Série A e Série B no Brasil ganha bem. Merecidamente. Temos que agradecer o tempo inteiro por isso. (Os técnicos gringos) ajudaram a gente a ver o jogo de uma outra maneira. E principalmente mais pressão no campo adversário, mais compactação ofensiva, mais dinâmica pós-perda. São coisas que acrescentam muito para o futebol brasileiro, para nossa seleção também. Acho que vai todo mundo crescer.

Tudo menos futebol

Lisca quase sempre esteve inserido em alguma bolha social. Na infância, vivia em ambiente de família com ótimas condições financeiras e pouco via a realidade da maioria da população porto-alegrense, gaúcha e brasileira. Hoje, pertence a uma minoria privilegiada de profissionais que ganham altos salários com futebol.

Apesar de tudo isso, foi justamente o futebol que fez o treinador abrir a mente e procurar entender outras realidades. Ele se diz muito grato por isso. E tem posicionamentos – políticos, culturais e sociais – que indicam, de fato, que as bolhas não foram capazes de limitar sua compreensão de tudo que acontece ao redor.

Com naturalidade e um senso crítico dificilmente visto no “mundo da bola”, quase um universo paralelo, Lisca abordou, na conversa com o ge, assuntos como homofobia, política, pandemia e outros preconceitos. Teve personalidade para emitir opiniões e refletiu muito sobre temas mais relevantes que a Série A e a Série B juntas, mas que muitas vezes são ignorados pelos atores do espetáculo futebol.

“Já trabalhei com jogadores homossexuais, não assumidamente, e não tive problema nenhum. Inclusive um deles eu tenho uma admiração enorme como profissional, como pessoa. Quando conseguimos o objetivo, pulamos abraçados, dentro do banheiro. Eu dentro do banho, ele entrou: “Quero te dar um abraço”. E eu: “Vem!”. Nós nos abraçamos pelados, sem problema nenhum, cada um na sua. Cada um tem sua preferência, e eu respeito demais. E concordo: acho que os jogadores podem começar a se assumir”.

Convite do Cruzeiro

Além dos ótimos resultados do América-MG, outro assunto colocou Lisca em evidência no noticiário esportivo do Brasil em 2020: o Cruzeiro, após demitir Ney Franco, foi atrás do treinador. Na época, se noticiou inclusive que Lisca era o plano A celeste, que acabou fechando com o multicampeão Felipão (já com contrato rescindido). O técnico do Coelho garante: a prioridade sempre foi Scolari. E avalia, com sinceridade, que assumir a Raposa em meio à maior crise da história do clube seria gastar um cartucho errado, justamente em um momento de ascensão na carreira.

– Primeiro, é uma honra e um orgulho muito grande receber um convite do Cruzeiro. É o convite certo na hora errada. É um sonho meu trabalhar no Cruzeiro. Quem não sonha? Imagina você receber um telefonema do presidente do Cruzeiro na sua casa, num fim de tarde, falando da possibilidade de trabalhar num clube como esse.

“Pô, mexeu comigo pra caramba. Mas, quando você já tem uma experiência, e conversei bastante com o presidente Sérgio (Santos Rodrigues), eu achei que não era o melhor momento. E, na verdade, o Cruzeiro estava querendo trazer o Felipão. Essa era a grande verdade. Mas o Felipão tinha algumas situações fora, e como não estava certo, a gente tem um empresário em comum, aí houve uma consulta também pela minha pessoa, mas a prioridade sempre foi o Felipão”.

– Depois que eu acabei não indo, acabaram melhorando a proposta (para o Felipão), ele veio, acabou segurando o time na Série B. Acho que era o único treinador que poderia chegar e falar para a torcida do Cruzeiro: “Oh, eu vim pra garantir o time na Série B”. Imagina se eu chego no Cruzeiro e falo isso. No outro dia, eu sou mandado embora. O torcedor vai lá na porta da Toca e vai dizer: “Esse cara é doido. Como que ele vem pro Cruzeiro e fala isso?”. Mas o Felipão tem estofo para isso. Ele tem currículo, ele tem uma imagem muito forte, é um cara que sabe bem a realidade do futebol. Ele falando, as pessoas já (pensam): “Opa, realmente esse cara tem razão, o Cruzeiro não está pronto pro acesso, vamos nos sustentar aqui, para no ano que vem vir com tudo”. Vou repetir: foi o convite certo na hora errada.

Em 2016, por exemplo, Lisca foi convidado na reta final do Brasileirão para tentar salvar o Inter do rebaixamento, sem sucesso. Ele traça um paralelo entre as duas ocasiões, por se tratarem de clubes gigantes em crises igualmente grandes, e revela que sofreu muito com a queda do Colorado naquela ocasião.

– Eu já tenho uma experiência em cima disso. (O Inter é) o clube onde fui criado, onde passei por todas as categorias, tenho uma história lá dentro, e foi uma convocação na verdade, para três jogos. Não tinha como dizer não, e não me arrependo, porque tenho uma história familiar lá. Meu bisavô foi treinador lá, goleiro, meu avô também. Costumo dizer que, se eu não fosse, os dois iam baixar e puxar meu pé. “Tá maluco, menino? Nessa hora H, que o clube mais precisa, mais difícil, tu vai dar as costas?” Agora, era uma situação muito ruim. Eu não tinha noção de como estava lá dentro, internamente, uma série de situações, depois deu Ministério Público. Até hoje é uma celeuma. Muito parecido com o que aconteceu aqui no Cruzeiro, mas numa dimensão menor. E eu considerei, realmente, de gastar um cartucho… Mais ou menos isso.

– Na verdade, eu estava muito próximo (de ter uma chance em um clube grande na época que assumi o Inter), e fui lá para o fim da fila. Porque, quer queira ou quer não, eu estava no rebaixamento do clube. Nunca ficou essa pecha pra mim, “o Lisca é o responsável”, da torcida, da imprensa, do clube. Nunca ficou. Mas para mim, pessoalmente, ficou. Eu fiquei muito frustrado. Foram seis meses bem difíceis, eu tive uma pequena depressãozinha, pensei muito ali se era legal dar sequência na carreira. Olha o nível que chegou. Mesmo sabendo que a responsabilidade não era minha. Mas tenho certeza que eu passei pra trás da fila. Já faz quatro anos, e nunca mais recebi o convite para trabalhar no profissional do Inter, apesar de ter feito bons trabalhos. Então, isso pesou muito, sim, na hora de analisar esses clubes maiores nessa situação de emergência. E agora aguardar para ter uma oportunidade mais condizente, que eu possa desenvolver meu trabalho, e não para fazer um trabalho tampão e depois perder oportunidade.

“Pistola” com a arbitragem

Lisca, renovado com o América-MG, vai disputar a Série A do Brasileirão 2021. Além dos rivais diferentes – e mais fortes -, haverá uma novidade relevante na rotina do treinador: o contato com o VAR, já que na Segunda Divisão não há o auxílio da tecnologia à arbitragem. Lisca experimentou o VAR na Copa do Brasil – competição na qual foi semifinalista com o Coelho -, mas passou raiva com erros de arbitragem na Série B, que poderiam ser evitados com o árbitro de vídeo. A experiência de 2020, inclusive, fez Lisca mudar de ideia sobre a tecnologia na arbitragem.

– Eu era contra o VAR, sabe? Totalmente. Mas, depois dessa Série B e o que aconteceu com o América, eu fiquei a favor. Porque a maioria dos erros foram de impedimento. Foram erros dos bandeirinhas, que o VAR resolve. O VAR é automático, é máquina. Você não erra mais impedimento na Série A, mas na Série B teve muito isso. Houve muitos erros contra o América. Muitos erros mesmo. Era para a gente já estar líder e campeão dessa competição. Com todo respeito à Chapecoense, que está fazendo um trabalho ótimo.

O assunto rendeu, e Lisca aproveitou para opinar sobre a necessidade da profissionalização da arbitragem no Brasil. Citou, inclusive, a média de salário dos árbitros da elite do país, bem diferente da média dos salários de atletas dos grandes clubes.

– O que eu acho é que a gente precisa profissionalizar a arbitragem no Brasil. Nossos juízes não são profissionais, e nós somos todos profissionais. Trabalhamos para isso, nos preparamos para isso, e o juiz não. Ele tem que dar aula, tem que viajar. Aí ele vai se preocupar com o jogo, geralmente viaja no dia do jogo. Na Série A e Série B não, mas nos estaduais pega o carro, viaja, chega cansado, tem que apitar, volta, não pode treinar, não pode se preparar, é mal remunerado. O juiz é mal remunerado. Na Série A e na Série B, é mal remunerado.

Eu perguntei para o (Anderson) Daronco uma vez quanto ele ganhava, ele que é Fifa, top, ele na época falou que limpo sobrava “4 pila” por jogo. Se ele apitar oito jogos, vai ganhar, sei lá, 30 mil reais. É ótimo? É ótimo salário, desculpa. Só que, para o nosso meio, é baixo. O que ganha o atleta que ele está comandando é imensurável em relação a ele. E ele não tem condições de treinar, de se preparar, de fazer curso, de ir lá na CBF, de treinar. “Fiz o jogo, agora vou ver o que errei”. Eles não têm tempo”.

– Está na hora da CBF assumir isso. Criar um ranking de juiz, pagar bem. Para eles poderem ter tranquilidade. Juiz tem que ganhar R$ 80, R$ 100 mil no mês. No mínimo, em relação ao que acontece (com os outros profissionais do futebol). Os bons. Errou, baixou. Não é muito difícil fazer isso. Série A e Série B são 20 jogos por rodada. Você seleciona 25, deixa cinco de stand by. Estou falando a grosso modo, quem sabe disso são os experts da arbitragem, mas tem como fazer. Valorizar os caras e fazer os caras serem mais profissionais. Aí vamos poder cobrar mais também, fazer eles falarem com vocês (imprensa) também. Por que não pode falar? Todos nós falamos. Vamos profissionalizar que eles vão melhorar. Tudo que é profissionalizado é melhor. Acho que esse é o caminho. Tem aqueles que são bons para caramba. Raphael Claus, show de arbitragem. Daronco. A Edna é boa árbitra, o Wilton, o Luiz Flávio… Os caras apitam bem para caramba, são profissionais. Nesse nível que temos que chegar.

Pão duro e sonhador

Antes do início da conversa, Lisca brincou que chegou a hora de ter um salário de seis dígitos. Engana-se quem acha que o treinador é gastador e gosta de luxo. Muito pelo contrário. É pão duro, como ele mesmo se assume, e a família endossa. Tão pão duro que, no início da carreira, guardava dinheiro embaixo do colchão, por não confiar em banco. Quase perdeu um bolo de notas mofadas. Com família estruturada, nunca faltou grana, mas também nunca foi consumista.

Em exercício de imaginação, para aposentar por um instante o estilo pão duro, respondeu sobre qual jogador em atividade no Brasil contrataria para seu time, caso tivesse dinheiro ilimitado para a compra de um atleta. Escolheu Marinho, do Santos, lembrando da parceria entre os dois.

– Que pergunta (risos)! Marinho. Primeiro porque é meu parceiro. Foi o jogador que começou lá no Fluminense, Inter, e, num momento difícil da carreira dele, o (Jorge) Machado, que era empresário dele, me chamou e disse: “Preciso que tu me ajude com o Marinho. O Marinho está há um ano e meio sem jogar. Fiz um investimento, os outros investidores também, estamos perdendo, estou sabendo que tu vai para o Náutico. Não quer levar ele?”. “Mas ele não joga há um ano e meio”. “Mas me ajuda”. E eu liguei para o Marinho. Ele: “Lisca, me dá essa brecha aí, que eu vou responder”. Levei o Marinho para o Náutico ganhando R$ 6 mil. O Marinho ganhava R$ 6 mil em 2014 no Náutico. E ele arrebentou, jogou demais, foi muito legal. Claro que ele ainda tinha dificuldade na parte física, algumas lesões, mas dali, depois do Náutico, foi para o Ceará, depois ele estourou.

“Hoje, considero o Marinho um dos melhores jogadores do futebol brasileiro, e o poder de decisão e a irreverência do Marinho… É muito legal também no nosso dia a dia dentro do grupo, ele é um catalisador de grupo muito forte. Aquela maneira, aquele jeito dele. Por merecimento, hoje, queria destacar o trabalho que ele está fazendo. Um grande abraço, Marinho, tu merece, e continua assim, que tu vai cada vez mais longe”.

Tirar o Marinho do Santos realmente não deve ser nada barato. Mas, na vida pessoal e profissional, Lisca passa a ter, cada vez mais, elementos para sonhar grande, com ambição. Não dá mais para guardar o dinheiro embaixo do colchão, e ele já conta que a esposa tem variado os investimentos da família, para que ela não dependa só do futebol. Querem mais, como todo brasileiro. O sonho, inclusive, é ter um próprio centro de treinamentos, para ajudar garotos talentosos a se transformarem em grandes atletas. Quer aproveitar o tempo de estrada para seguir fazendo a máquina girar, a indústria do futebol produzir.

O outro sonho parece estar ainda mais próximo.

– Meu maior sonho como profissional de futebol é me estabelecer no mercado dos clubes grandes do Brasil. Esse seria o sonho de todo profissional que começou como eu, lá embaixo, que tem aspirações profissionais, aspirações financeiras também, porque, como falei, quando se estabelece nesse mercado, você realmente muda de vida em todos os aspetos, profissional e pessoal. Então, meu sonho é entrar nesse mercado, como já estou entrando. Hoje, me considero um privilegiado de trabalhar nos 40 melhores clubes do país, num clube como o América. Mas meu sonho é realmente me estabelecer nesse mercado, ser valorizado e ter várias oportunidades em clubes de boa dimensão.

Não há doido que duvide.

https://interativos.globoesporte.globo.com/futebol/times/america-mg/materia/perfil-lisca-america-mg?utm_source=Twitter&utm_medium=Social&utm_content=Esporte&utm_campaign=globoesportecom


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Comentários:
5
  • Eduardo Silva disse:

    Chico, bom dia,

    Algumas considerações:

    1) Uma coisa que fica claro e cristalino na fala do Lisca Nada-Doido é que realmente o GRANDEEE Decampeão Mineiro é APENAS uma ponte para times da prateleira de cima do futebol brasileiro, nada diferente dos jogadores e outros que passaram pelo CT de Lanna Drumond, INfelizmente é a realidade, os caras já chegam pensando em fazer UMA boa temporada e rapidamente ter chance em um clube maior. Ele mesmo tem um acordo com o América que se aparecer uma proposta de um time da série A ele é liberado sem problemas contratuais.

    Mas o América é isso, um clube de transição, sempre está formando elencos, revelando jogadores e sobe pra série A, depois cai, não tem uma sequência na prateleira de cima, não consegue “mudá de patamá”, fora que tem boa estrutura, contas em dia, mas não tem torcida e nem gostam que atleticanos e cruzeirenses fiquem torcendo e puxando o saco deles….É ISSO! Que siga em frente, estamos na torcida mesmo assim para o Coelho, segunda força de minas…

    2) O Staff que cerca os jogadores de futebol (bonita palavra, né?) que é constituído de seu agente credenciado, seu advogado, assessor de imprensa e mais um monte de lambe-bolas e puxa-sacos, as vezes mais atrapalha do que ajuda. Olha o Dedé, por exemplo, os caras entraram na justiça pedindo rescisão indireta de seu contrato de trabalho com o clube e seu advogado escreveu que o jogador tinha uma relação com o Cruzeiro próxima de “trabalho escravo”…

    Ai o juiz indeferiu e o desembargador também não acatou os argumentos e ainda lhe deu “uma sentada” falando que vida sofrida é a situação de quem ganha 1.100 reais por mês e não um cara que recebe 750 mil e mandou pagar os custos do processo no valor de R$277.813,33 e ainda abaixou o valor pedido de mais de 35 milhões para 13 milhões de reais, uma coisa de louco!

    Cito esse caso porque jogador de futebol mal sabe assinar o nome completo, só sabe jogar videogame, comprar carrão, fazer tatuagem, comprar roupa de marca e quem administra sua carreira, sua imagem, tem os “öios muito grande” e dá nisso, o cara sai queimado com o clube, com a torcida que TINHA consideração por ele, mesma coisa com tantos outros como Arrascaeta mesmo que chegou em BH não conseguia nem abrir a boca, igual um bicho do mato, um Zé Ninguém e saiu brigado, negociado com o Flamengo, numa queda de braço com seus agentes e advogados com o clube que o abriu as portas e o projetou, um Zé Ruela mesmo!

    3) E o Presidente Sérgio Gel Rodrigues tá fazendo uma parceria com o Ronaldo Fenômeno para um suposto jogo no centenário do clube com o Real Valladolid,clube que ele é sócio majoritário e outras parcerias não divulgadas. Vamos ver se essa parte quer dizer trazer dinheiro ao clube que é o que importa mais nesse momento.

    Outra fato é que o Jadsom tá sendo vendido para o Bragantino e o Cacá também pode ir para um clube do japão, são transações que podem trazer um alívio temporário para as finanças do clube, como acertos nas folhas salariais e o Orejuela que pode também ser negociado a qualquer momento além da liberação da venda do terreno do clube. PRONTO! Não é só de notícias ruins que ronda o crucru criminoso…kkk

    4) E o Givanildo Vieira de Sousa, o Incrível Hulk? vem ou não vem? tava lendo que o cara ganhava no Shanghai SIPG – € 23,4 milhões (R$ 101 milhões) por ano, isso dá 8 milhões e meio por mês..kkkk é muito dinheiro!! Mas o cara jogou em times como Vitória/BA, Kawasaki Frontale, Tokyo Verdy, Porto, Zenit, Shanghai SIPG, ou seja, tirando o Porto que tbém não é essa Brastemp toda, jogou onde mesmo? Como diz o outro: O cara não precisa ser bom jogador, ele tem que ter é um grande empresário! Mas o time da MRV tá precisando de uma grife além do ARROGANTE Pofexô Pardal Argentino, o adorado Xampaoli…

    Vamos aguardar…kkk Por falar nisso, pronta recuperação ao Capitão América, o Adilson Batista que sofreu um infarto e teve que ser operado…

  • Ed Diogo disse:

    Ótima entrevista cara esforçado batalhador que venceu independente do resultado de hoje a noite.
    Com certeza fará o América jogar bem hoje e seremos tricampeões.
    Acredita Coelhão

  • Antonio da Silva disse:

    Vai ser a oportunidade do Lisca provar se é técnico de 1ª ou 2ª divisão.