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Novos detalhes do contrato de compra e venda do Cruzeiro. Tem que ler com calma, pra entender

Foto: XP/maisminas.org

No Globoesporte.com de hoje, reportagem e análise do Rodrigo Capelo, que teve acesso à integra do documento. Muito grande, mas tentar entender e concluir alguma coisa, é preciso ler com atenção

* “Ronaldo não precisa aportar R$ 400 milhões e pode obrigar Cruzeiro a recomprar SAF; leia o contrato”

Acordo negociado pela XP e assinado por Sérgio Rodrigues, presidente cruzeirense, possui termos melhores para quem compra (o ex-jogador) do que para quem vende (a associação civil)

Por Rodrigo Capelo

23/03/2022

A venda da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do Cruzeiro para Ronaldo passa por seus dias mais difíceis. De um lado, o empresário apresentou novas condições para concluir a aquisição. Do outro, conselheiros estão insatisfeitos com termos do acordo.

Três meses após o ex-jogador assinar pré-acordo pela compra de 90% da SAF, as circunstâncias da negociação começam a ser esclarecidas agora.

ge obteve cópia do contrato assinado por Cruzeiro e Ronaldo em 18 de dezembro, um documento de dez páginas, no qual estão descritos deveres e obrigações de ambas as partes.

Friamente, o documento permite constatar que a negociação foi amarrada em termos melhores para quem compra (o ex-jogador) do que para quem vende (a associação). O ativo que está à venda, nessa negociação, é o futebol profissional e de base celeste.

Em resumo, o contrato assinado em 18 de dezembro diz que:

  • Ronaldo tem a obrigação de aportar R$ 50 milhões no negócio; o empresário está liberado de desembolsar os R$ 350 milhões restantes, mesmo que receitas da SAF sejam baixas;
  • Ronaldo pode obrigar a associação a recomprar a SAF pelo mesmo valor que ele tiver gastado na operação, caso entenda que não foram tomadas providências para reestruturar seu endividamento;
  • Para pagar dívidas, a associação precisará regularizar e vender seus imóveis: a Sede Campestre, a sede social do Barro Preto e a sede administrativa, localizada no mesmo bairro;
  • O contrato dispõe de seis “condições suspensivas” para proteger os interesses de Ronaldo na negociação, mas não conta com nenhuma no sentido oposto, para resguardar a associação;
  • O acordo inclui a transferência de todas as atividades relacionadas ao futebol e a exploração econômica de marcas e símbolos, mas não prevê nenhum pagamento adicional, a título de royalties ou similar.

Esses termos foram negociados por Pedro Mesquita, diretor da XP Investimentos, assessoria técnica contratada para auxiliar o Cruzeiro na busca por novo proprietário para o futebol celeste. A empresa atuou no que o mercado chama de “sell side” (lado de quem vende).

Na associação civil cruzeirense, o responsável pelo acordo é Sérgio Rodrigues, presidente eleito para o período entre 2021 e 2023.

A seguir, o ge passa pelos principais pontos do contrato assinado em dezembro. Eles são anteriores à negociação que está avançando neste momento, na qual Ronaldo faz novas demandas. O empresário exige que a associação passe por um processo de Recuperação Judicial ou Extrajudicial, além de transferir a propriedade das Tocas da Raposa I e II, centros de treinamento, em troca do pagamento da dívida tributária.

Promessa de investimentos

Quando o Cruzeiro anunciou Ronaldo como futuro comprador de sua SAF, a XP comunicou ao mercado, por meio de nota, que o empresário investiria R$ 400 milhões na empresa ao longo dos próximos anos.

Apesar de a companhia reiterar, em novo comunicado, que esse valor será aportado pelo ex-jogador, o contrato mostra outros termos.

Ronaldo está obrigado a aportar R$ 50 milhões na SAF, na data em que os documentos definitivos forem assinados – à vista e mediante a transferência de 90% do capital da empresa para sua propriedade.

Os R$ 350 milhões restantes estão atrelados a “receitas incrementais”. Primeiro, será calculada a média das receitas contabilizadas pela associação entre 2017 e 2021. Caso a SAF não alcance esse número pré-determinado, a partir de 2022, Ronaldo precisaria fazer investimentos.

A mecânica acima foi tornada pública na semana passada, quando um grupo de conselheiros cruzeirenses quebrou cláusula de confidencialidade e expôs alguns termos do contrato. Agora, com o contrato na íntegra, o ge atesta que esses R$ 350 milhões não serão obrigatoriamente investidos, nem mesmo em caso de receitas baixas.

O acordo prevê a seguinte opção, caso a meta contratual para receitas não seja batida. Em vez de tirar dinheiro do bolso para injetá-lo na SAF, Ronaldo poderá devolver percentual da empresa para a associação.

O contrato possui fórmula pré-determinada para essa situação – na qual Ronaldo não estaria disposto a desembolsar nenhum centavo além dos R$ 50 milhões. A equação considera a quantia que o dono precisaria investir e, a partir dela, estabelece qual seria a quantidade de ações que ele precisaria devolver para a associação.

Esse dinheiro tem relação direta com a capacidade financeira que terá a SAF do Cruzeiro. A promessa de investimentos foi um meio que as associações encontraram para vender o futebol a um terceiro, mas estimular que ele aporte recursos para tornar o futebol competitivo.

O Botafogo tem previsão de R$ 400 milhões de John Textor, enquanto o Vasco aguarda R$ 700 milhões da 777 Partners. Nesses clubes, não há mecanismo similar ao do Cruzeiro, segundo apurou o ge com todas as partes envolvidas em cada negociação. Trata-se de dinheiro de fato.

+ Investimentos, garantias e dívidas: racha no Cruzeiro expõe diferenças entre negócios de Ronaldo e Textor

Obrigação de recompra

Uma das questões mais sensíveis para a recuperação do Cruzeiro é a reestruturação de seu passivo. O clube acumulou R$ 1 bilhão em dívidas e precisa formular um plano de pagamento factível, para que elas não prejudiquem o futebol. Foi neste ponto que entrou a proposta da SAF.

Ronaldo concordou em se responsabilizar pelas dívidas no limite da Lei da SAF. Ou seja: o Cruzeiro SAF terá de repassar 20% de suas receitas mensais e 50% de dividendos (lucros distribuídos a sócios), para que a associação aplique esses recursos no pagamento das dívidas.

No contrato assinado em dezembro, está disposto que a associação assume a responsabilidade de “envidar seus melhores esforços para promover a reestruturação de seu passivo”.

Além dos recursos que a SAF repassará, nos termos da lei, o Cruzeiro concordou em regularizar e alienar (vender) três imóveis: a sede social do Barro Preto, a sede administrativa, no mesmo bairro, e a Sede Campestre.

Uma cláusula foi inserida para proteger Ronaldo dessas dívidas. Caso a associação não adote “providências concretas para promover a reestruturação de seu passivo”, o empresário poderá obrigá-la a recomprar dele todas as ações da SAF, pelo mesmo preço pago por ele.

Não existe nenhum trecho que proteja a associação dessa mesma maneira. Em outras palavras, o contrato não prevê condições que o novo proprietário precisará cumprir, sob pena de a associação poder recomprar dele o futebol pela mesma quantia que tenha vendido.

Condições suspensivas

O contrato entre Cruzeiro e Ronaldo prevê uma série de condições, que, se não cumpridas, permitem ao comprador interromper a operação.

São elas:

  • Conclusão de auditoria, “de forma satisfatória ao Sócio Estratégico”;
  • Concordância em transferir o futebol para a SAF (incluindo contratos de jogadores, direitos comerciais e uso exclusivo da marca);
  • Celebração dos documentos definitivos, em termos mutuamente satisfatórios para a associação e o novo dono;
  • Garantia de que ações da SAF estarão livres e desembaraçadas;
  • Garantia de que antecipações de receitas não prejudicarão orçamento e plano de negócios da SAF;
  • Ausência de qualquer decisão do governo, inclusive judicial ou arbitral, que possa prejudicar a criação da SAF.

Segundo cláusula desse trecho, as condições suspensivas só valem para Ronaldo. O empresário tem a possibilidade de ignorar qualquer deslize, total ou parcialmente, mas a opção pertence apenas a ele. Não há condições suspensivas que protejam interesses da associação.

Uso da marca

Em uma das partes mais importantes do acordo, a associação civil se compromete com as “premissas da operação”. Elas incluem a transferência de bens, direitos e obrigações relacionados ao futebol profissional para a SAF, bem como a exploração econômica dos direitos de propriedade intelectual associados ao Cruzeiro.

Esses foram os itens exigidos:

  • Direito de uso, com exclusividade, das marcas do Cruzeiroem todas as suas configurações e formatos, incluindo nomes, símbolos, siglas, hinos, desenhos e mascotes;
  • Todos os contratos de trabalho necessários na visão de Ronaldo, entre eles contratos de imagem de jogadores e contratos de formação com atletas de todas as idades;
  • Todos os contratos em vigor relacionados a futebol masculino e feminino, como fornecimento de material esportivo, patrocínios, direitos de transmissão e esportes eletrônicos (e-sports).

A exploração comercial da marca do Cruzeiro logicamente tem valor, mas não foi incluída, na negociação, nenhuma remuneração à associação por essa propriedade intelectual. Outros clubes, como o Vasco, estão incluindo pagamento de royalties por uso da marca.

O que dizem os envolvidos

ge procurou Ronaldo, Sérgio Rodrigues e a XP Investimentos, para que todos pudessem se posicionar a respeito do conteúdo do contrato. Em relação às cláusulas, todos alegam que não podem fazer comentários, por causa da exigência por confidencialidade presente no documento.

A equipe do ex-jogador se pronunciou por meio de nota:

– Ronaldo recebeu da XP (contratada pelo Cruzeiro), assim como outros players do mercado, um cenário de oferta para a possível aquisição da SAF. Dentro do que entendeu justo, considerando a gigantesca dívida do clube, fez sua proposta formal.

Sérgio, presidente cruzeirense, também se posicionou:

– O Cruzeiro contratou a XP considerando a idoneidade que possui e tem convicção de que a empresa só assessora o clube em todo o processo. Tivemos conhecimento de uma segunda proposta, mas confiamos na qualidade da XP para nos indicar a melhor entre elas, que foi aceita exatamente por ser a melhor e mais sustentável para o clube ao longo do tempo.

A XP recebeu perguntas da reportagem, mas optou por não respondê-las. A empresa reenviou nota oficial que havia escrito na semana passada, na qual reitera que o investimento de R$ 400 milhões será feito por Ronaldo.

A empresa afirmou que houve “imprecisões técnicas e interpretações errôneas” na descrição do contrato feita por conselheiros insatisfeitos, em carta publicada por um grupo deles na semana passada.

Opinião do jornalista

Ao torcedor, em primeiro lugar, o que importa é o futebol. Em particular quando se trata do cruzeirense, tão machucado nos últimos anos pelo rebaixamento para a Série B e pela dificuldade em se reerguer. A chegada de Ronaldo ao clube é um sopro de esperança. Disso ninguém duvida.

É melhor ter o futebol do Cruzeiro administrado pelo empresário ou pela associação? De um lado, está alguém de reputação internacional e com experiência no mercado do futebol, que propõe recuperar o futebol por meio de gestão profissional e racionalidade. Do outro, estão conselheiros que afundaram o clube não só por incompetência, também após farrearem com o dinheiro do torcedor por anos. A escolha não é difícil.

Ao mesmo tempo, a leitura crítica dos fatos é essencial. Se a instituição foi atirada em crise interminável, uma das razões foi a confiança cega que a opinião pública depositou em quem estava no poder.

O que Ronaldo fez de errado na história? Nada. Ele é um empresário, está adquirindo um clube de futebol no Brasil e tem tudo para fazer bom negócio. Quando o Cruzeiro estiver reorganizado, possivelmente integrado ao Real Valladolid na Espanha, tem tudo para se tornar novamente competitivo e valioso. O projeto faz sentido.

A fragilidade é a promessa de investimentos. Os R$ 50 milhões iniciais são insuficientes para o começo de qualquer conversa. E agora temos clareza de que não existe garantia de que haverá outros R$ 350 milhões. Comparada a outras empresas recém-fundadas, a SAF do Cruzeiro terá trajetória diferente. Esqueçam reforços caríssimos, pelo menos agora.

Convenhamos que, até na questão dos valores, a responsabilidade pela confusão não é de Ronaldo. Nem ele, nem ninguém da equipe falou sobre investimentos. Foi a XP que colocou o número na mesa, numa tentativa amadora de equiparar os projetos de Cruzeiro e Botafogo.

Externamente, a XP acumula equívocos. Eles começaram em dezembro, quando Pedro Mesquita, em sua rede social pessoal, ameaçou deixar o processo de venda do Cruzeiro, caso conselheiros não aceitassem a venda de 90% da SAF, em vez de 49%. Chantagem escancarada não combina com a postura institucional da companhia.

Depois, houve a tentativa deliberada de confundir torcida e mercado com a falsa promessa dos R$ 400 milhões. Não, não existe a menor garantia contratual de que esse valor será aportado. Embolar os conceitos de “investimento” e “receita” para fabricar um número é prática nociva.

Internamente, também fica um ponto de interrogação. Embora Pedro Mesquita seja figura frequente nas imagens com Ronaldo – e até “parceiro” dele na proposição de uma liga de clubes, algo que configura evidente conflito de interesses –, a XP foi contratada pelo Cruzeiro. Ponto.

A mesma pergunta vale para o Cruzeiro Esporte Clube, a associação. A negociação foi levada adiante sem a menor transparência em relação a torcedores e associados. Isto já era público e notório. Agora fica também evidente como a entidade, internamente, não tomou cuidados mínimos.

Em dezembro, não havia plano para pagamento da dívida e não havia promessa relevante de investimento. Havia uma segunda proposta – recusada por Sérgio Rodrigues, por recomendação da XP –, mas ninguém soube dos valores e das condições desta alternativa.

E agora já é tarde. Os termos do contrato assinado são difíceis de reequilibrar, e as novas condições apresentadas por Ronaldo para fechar negócio precisarão ser aprovadas apressadamente, pois, se não forem aceitas, o empresário poderá desfazer o negócio e ir embora.

É difícil vislumbrar um futuro positivo para os envolvidos, caso o desfecho seja a saída de Ronaldo. Assim como, ao acompanhar a história da venda do Cruzeiro, é difícil concluir que ela sirva de exemplo para alguém.

@rodrigocapelo

https://ge.globo.com/negocios-do-esporte/noticia/2022/03/23/ronaldo-nao-precisa-aportar-r-400-milhoes-e-pode-obrigar-cruzeiro-a-recomprar-saf-leia-o-contrato.ghtml


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Comentários:
5
  • Alisson Sol disse:

    Dá quase pena ver a tristeza dos torcedores adversários com o fato de que o Cruzeiro é o melhor exemplo da famosa citação de Oscar Wilde (link)!

    Ficaram anos dizendo que “A amarelinha, nunca terão!“. De repente, o Cruzeiro tem 4. Depois: “A Copa do Brasil não importa!“. Pois é. E quando apareciam pesquisas de torcidas falsas? Era um alvoroço. Agora, de repente, os torcedores adversários são todos empresários de sucesso. Gente que não gostava de análise de esquema tático, tipo 4-4-2, agora é “analista de investimentos”! Incrível como estão todos preocupados com a dívida do Cruzeiro. Parece até que não há nenhuma outra dívida com a qual se preocuparem… Oops!

  • Silvio Torres disse:

    Para nós, atleticanos, que acompanhamos e sofremos durante tantos anos com os absurdos favorecimentos que essa “instituição” teve (arbitragens, mídia local e nacional, decisões judiciais, regulamentos, negociatas e mais um caminhão de eteceteras), nenhuma surpresa. Sempre soubemos que TUDO lá envolve tenebrosas transações que, como acontece nos subterrâneos da ilegalidade grossa, foram mantidas em segredo através por poderosos interesses. A grande novidade para quem não é atleticano é que, desde 2019, todo o oceano de esgoto acumulado em décadas de “sucesso” explodiu de uma vez, a partir do momento em que o “grande que não cai” começou a caminhar inexoravelmente para o rebaixamento. A bandidagem chegou a tal ponto que fontes internas passaram a vazar aquilo que sempre era escondido ou convenientemente omitido e ignorado pela mídia, justiça e outros órgãos. Com tudo que tenho acompanhado nesses últimos três anos, vou chegando á conclusão que só resta uma saída para o bem do futebol e da sociedade em geral, mas que duvido muito seja colocada em prática por quem tem os poderes e a missão de zelar pelo bem estar e bom funcionamento do país. Seria dar ao Massa Falida o mesmo tratamento que foi dado á usina nuclear de Chernobyl. Evacuar as pessoas e blindar a estrutura podre com uma espessa camada anti-radiotiva, que impeça o vazamento de tantos atos tóxicos para o meio ambiente.

  • Ed Diogo disse:

    Que confusão, tudo obscuro feito escondido sem a mínima para is conselheiros ou eles de novo foram omissos e agora que a bomba estourou estão querendo mostrar que não é culpa deles? Deixaram o presidente agir sozinho. Será que alguém ganhou propina em cima deste contrato? Muitas dúvidas. Para variar SAFadeza .
    Só espero que o América acerte na SAF , para evitarmos estes transtornos.

  • Nivaldo Alves disse:

    Ronaldo pagou o Transfer ban… A imprensa vive alardeando que as dívidas estão sendo pagas, salários estão em dias. Será? Se estivessem sendo pagas, não entendo o porquê de nova punição junto ao CNRD, pelo não pagamento do Careca ao clube do Acre. Esta dívida é apenas uma gota d’água num oceano de podridão. Não mudou nada!

  • STEFANO VENUTO BARBOSA disse:

    Soltar nota dizendo que o “contrato” já foi modificado e foi feito às pressas, foi a famosa desculpa de peidorreiro.
    Se fosse assim, fazia um mútuo entre o cruzeiro e Ronaldo e resolvia a questão. Depois partia para as discussões do contrato.
    Me ajuda aí gente. Não agrida nossa inteligência. Depois os conselheiros que têm um pouco de discernimento e honestidade colocam a verdade a tona, eles jogam contra a torcida, que passa a ameaça-los e as suas famílias. Deus me livre dos advogados dessa negociação e me dê o advogado do Fluminense.