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Foto: CEC/diariodopara.com.br
Há duas semanas falamos desse assunto aqui. Assim como vários comentaristas do blog, também não tenho dúvidas de que o futebol sempre foi uma grande lavanderia de dinheiro mundo afora. É dinheiro demais rolando com extrema facilidade e velocidade, às vezes por jogadores que não jogam nada e têm trajetória curta no futebol.
E como o mundo do futebol é à margem das leis que deveriam valer para todos no Brasil, tudo pode acontecer. Reportagem da revista Piauí que chegou às bancas este mês:
“vultos do crime organizado”
Cruzeiro lavou 3 milhões de reais do PCC na compra de atacante, diz PF
Ex-presidente do clube afirma que valores revelados pela investigação não têm relação com transferência do atleta
Allan de Abreu, do Rio de Janeiro|13 fev 2025_17h03
Dos 13 aos 19 anos, o atacante Diogo Vitor foi tratado como grande promessa no Santos Futebol Clube. No jargão da bola, era uma “joia da base”. Chegou a ser sondado pela equipe B do Real Madrid e por clubes portugueses. Em 2016, foi alçado à equipe principal do Santos e passou a ter a carreira gerenciada por William Barile Agati, um próspero empresário paulistano, dono de imóveis de alto padrão em São Paulo e de uma fazenda de 12 mil hectares em Mato Grosso. Dois anos mais tarde, em 4 de março de 2018, no Campeonato Paulista, Diogo Vitor teve o seu momento de glória ao marcar o gol de empate no clássico contra o Corinthians, já no fim da partida, no estádio do Pacaembu. Pouco mais de duas semanas depois, porém, logo após a partida do Santos contra o Botafogo de Ribeirão Preto pelas quartas de final do torneio, o jovem atacante foi flagrado pelo exame antidoping por uso de cocaína.
Foi impedido de jogar profissionalmente por um ano e meio, período em que ficou sem salário ao ter o contrato com o Santos suspenso. Agati passou a pagar todas as contas do jogador. No início de 2020, o clube rescindiu o vínculo com Diogo Vitor. Meses depois, ele assinou um contrato para atuar na equipe sub-23 do Corinthians, mas acabou dispensado em janeiro de 2021 sem nunca ter entrado em campo pelo clube paulistano. A carreira do atacante parecia arruinada, mas Agati tentou uma última jogada: negociou o atleta com o Cruzeiro, um dos gigantes de Minas, que na época vivia o calvário da série B do Campeonato Brasileiro.
Foi uma transação financeira estranha. Por ter contratado o jogador, o normal seria que o Cruzeiro pagasse a Agati, já que o empresário detinha os direitos econômicos do jovem. Mas o dinheiro tomou o caminho contrário: entre 11 de fevereiro e 16 de março de 2021, foi a F1rst Agência de Viagens e Turismo, empresa de Agati, quem transferiu, em parcelas, 3 milhões de reais para as contas do clube mineiro. Passados três dias da última transferência, o Cruzeiro começou a devolver parte do dinheiro, um total de 1,58 milhão de reais, para a conta pessoal do empresário e para a Burj Motors, outra empresa de Agati.
Foi um péssimo negócio para o Cruzeiro. Assim como ocorreu no Corinthians, Diogo Vitor deixou a agremiação no fim daquele ano sem ter disputado um jogo sequer. Para Agati, aparentemente, também foi mau negócio, já que ele entregou 3 milhões de reais ao clube mineiro e só recebeu de volta metade do valor. Mas, para o Ministério Público Federal, o objetivo de Agati no negócio não era lucrar, mas lavar parte do dinheiro que amealhou com o comércio de cocaína. Afinal, sua empresa recebeu 1,5 milhão em uma transação simulada e ainda ficou com um “crédito” de igual valor, para transações futuras, com outros atletas.
Entre 2019 e 2021, nas contas do MPF, Agati traficou cerca de duas toneladas de cocaína para o Sul da Espanha, seja em navios partindo do Porto de Paranaguá (PR), seja em um jato executivo Dassault, que, segundo um delator da quadrilha, transportava do Brasil para a Europa tanto jogadores de futebol quanto cocaína pura. O dinheiro era movimentado por meio de doleiros – a piauí encontrou documentos que comprovam que Agati era o representante de uma offshore denominada Baroh Invest nas Ilhas Seychelles, Caribe.
Com vínculos estreitos com a facção Primeiro Comando da Capital (PCC), Agati integrou um consórcio formado por criminosos brasileiros e europeus para resgatar da prisão em Moçambique Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, um dos maiores narcotraficantes brasileiros, por meio do suborno a altas autoridades do país africano. Ele também não titubeou em ordenar o assassinato de quatro membros da quadrilha que furtaram um carregamento de cocaína no litoral paranaense.
Em nota, a assessoria do Cruzeiro informou que a atual gestão assumiu a SAF do clube em maio de 2024 e que por isso não tem conhecimento sobre a transação financeira com William Agati. “Contudo, o Cruzeiro SAF está à disposição das autoridades, sem medir esforços, para colaborar com o que for necessário”, conclui o comunicado.
Já o advogado Sérgio Santos Rodrigues, presidente do Cruzeiro em 2021, disse à piauí que Diogo Vitor foi cedido gratuitamente ao clube, e que as transferências bancárias entre o Cruzeiro e o empresário se devem a um contrato de empréstimo feito por Agati ao clube mineiro, sem relação com o jogador. “Não houve compra de passe [do atacante], não. Foi pedido uma oportunidade [dada] para o Diogo tentar voltar a jogar”, disse Rodrigues. Ainda segundo o advogado, todo o valor supostamente emprestado por Agati foi quitado.
Embora não fosse filiado ao PCC, William Agati foi escolhido como uma espécie de “broker” da facção, alcunha de alguém com perfil discreto e astúcia em se manter abaixo do radar da polícia. Quando aparecia em uma ou outra investigação, pagava propina para ter o nome limado do inquérito, como fez em 2019, quando desembolsou 800 mil reais para dois policiais do Departamento Regional de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), da Polícia Civil de São Paulo: Valmir Pinheiro e Valdenir Paulo de Almeida, o Xixo, presos em setembro passado. Um dos sócios dele no tráfico era Edmilson de Menezes, o Grilo, ex-cunhado de Roberto Soriano, o Tiriça, um dos maiores líderes do PCC (Grilo morreu atropelado no ano passado na Via Dutra, durante romaria a Aparecida, no Vale do Paraíba).
Segundo a PF, cabia a Agati, entre outras funções, vender grandes remessas de cocaína enviadas da Bolívia por Fuminho para Nicola Assisi, representante, no Brasil, da máfia italiana ‘Ndrangheta. Assisi e o filho Patrick foram presos em julho de 2019 em Praia Grande, Baixada Santista, e desde então aguardam o julgamento de um pedido de extradição feito pelo governo italiano.
Ao analisar as imagens gravadas por uma câmera instalada no apartamento de Assisi, a Polícia Federal identificou um grupo de traficantes responsável por inserir cargas de cocaína nos contêineres do Porto de Paranaguá, entre eles Jeferson Barcelos de Oliveira, guarda municipal da cidade do litoral paranaense.
Ao investigar Oliveira, a PF chegou ao chileno Cristian Gerardo Fuenzalida Guzmán, homem de confiança de Agati e ponte entre o empresário paulistano e os traficantes de Paranaguá. Relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) mostram que, entre 2017 e 2020, Guzmán transferiu 4,8 milhões de reais para empresas de Agati, incluindo a F1rst, usada na transação com o Cruzeiro. Um valor muito acima da capacidade financeira do chileno, de acordo com o MPF. Outro dado que chamou a atenção da PF é que na sede da F1rst, em Florianópolis, funcionava uma casa de câmbio.
No início de 2020, o grupo se preparava para enviar 770 kg de cocaína para o Porto de Valência, na Espanha, via Paranaguá. Mas, na madrugada de 21 de março daquele ano, uma quadrilha disfarçada de policiais federais interceptou o caminhão que levava a droga ao porto paranaense e roubou todo o carregamento. A perda da cocaína, que gerou um prejuízo estimado em 4 milhões de dólares, deixou Agati e Grilo furiosos. “Vou descontar meu ódio nesses pilantra”, escreveu Grilo no Sky ECC, um aplicativo utilizado por criminosos do mundo todo por conta da forte criptografia. “Irmão, mata todo mundo”, respondeu Barby, um traficante espanhol não identificado pela PF, em mensagem traduzida ao português pelo Google.
Poucas horas após o roubo chegou-se a um suspeito: o guarda municipal Jeferson Oliveira. Na noite daquele mesmo dia 21, Guzmán e outros três homens foram até a casa de Oliveira, em Paranaguá. Sob as ordens de Agati, começaram a espancar o guarda municipal, em um típico “tribunal do crime” do PCC. Mas Oliveira foi salvo pela Polícia Militar, que chegou ao endereço após ser alertada por vizinhos, assustados com a gritaria na casa do guarda.
Na casa, os policiais encontraram três pistolas, um revólver, 24 celulares e 39 lacres utilizados em contêineres. Todos foram presos em flagrante, mas liberados dias depois, para azar de Oliveira. No dia 6 de maio daquele ano, o guarda municipal manobrava o seu carro em frente a uma oficina mecânica em Paranaguá quando foi executado com vários tiros. A morte foi comemorada por Agati. “Mataram o guarda, mandaram pro inferno”, escreveu no Sky ECC. Três semanas antes, outro suspeito do roubo, Marcos Antonio Carvalho, também foi assassinado a tiros de fuzil em um posto de combustível de São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba. Para a Polícia Federal, “o grupo queria não só a vingança, mas ter o domínio das atividades no Porto de Paranaguá”. Houve ainda um terceiro assassinato, cuja vítima não foi identificada pela PF.
Uma delação levaria a Polícia Federal a desvendar o modal aéreo usado por Agati para exportar cocaína à Europa. Preso em 2020 por lavar dinheiro do tráfico em Paranaguá, Marcos José de Oliveira firmou um acordo de colaboração com o MPF e delatou o uso de aviões particulares por Agati, inclusive o Dassault Falcon adquirido por ele em 2019 por 4,5 milhões de reais, para levar jogadores de futebol e também cocaína para o continente europeu. A PF não identificou quais seriam esses atletas, mas encontrou mensagens no Sky ECC em que membros da quadrilha de Agati compartilham com o “capo” imagens de fundos falsos em aviões onde seria possível ocultar até 1,2 tonelada de cocaína. (A PF e o MPF obtiveram acesso ao conteúdo das mensagens do aplicativo graças a um acordo de cooperação com o Ministério Público italiano, que tinha acesso ao material.)
A PF suspeita que parte da droga enviada por Agati para a Europa fosse fornecida por Fuminho. Conforme reportagem da piauí, após seguir os passos da namorada do traficante do PCC pelo Brasil, Argentina e África do Sul, a Polícia Federal descobriu que Fuminho estava hospedado em um hotel de luxo em Maputo, capital moçambicana, onde a facção pretendia fincar base, com o apoio de Agati e do cônsul honorário de Moçambique em Belo Horizonte, Deusdete Januário Gonçalves.
Na época, o consulado de Moçambique na capital mineira havia se transformado em um quartel-general do PCC – Marcos Roberto de Almeida, o Tuta, um dos líderes da facção paulista, trabalhou na representação diplomática entre julho de 2018 e julho de 2019. O delator Marcos Oliveira disse que Agati, que também era funcionário do consulado, planejava criar várias representações parecidas do país africano pelo Brasil, que serviriam de base para o PCC, uma vez que, por lei, representações diplomáticas são invioláveis. Ainda segundo Oliveira, Agati chegou a vender carteiras de cônsul de Moçambique para lideranças da facção, a 2 milhões de reais cada.
Em 13 de abril de 2020, policiais do DEA (Drugs Enforcement Administration) disfarçados de hóspedes do hotel em Maputo onde estava Fuminho prenderam o traficante, que possuía dois mandados de prisão em aberto no Brasil. Começava aí uma corrida entre mocinhos e bandidos. De um lado, a pressa da PF em trazer Fuminho o quanto antes para o Brasil, pois a corporação temia uma fuga do traficante. De outro, Agati e o croata Kristijan Palić capitanearam um consórcio de traficantes do Brasil e dos Bálcãs para tirar Fuminho da cadeia, com o auxílio do cônsul Deusdete Gonçalves.
De pronto, surgiram dois caminhos: o legal, por meio de recursos à Justiça moçambicana impetrados por advogados ligados à facção, e outro ilegal, que seria o resgate à força de Fuminho da cela dentro de uma delegacia especializada da polícia moçambicana por meio da cooptação de servidores públicos em Maputo.
Em conversas pelo Sky ECC, Palić informou ao grupo de criminosos que um policial moçambicano estava disposto a entregar um telefone celular para Fuminho dentro da cela da delegacia em Maputo em troca de 2,5 milhões de dólares. Agati autorizou o pagamento e um celular foi entregue ao detento de uma cela vizinha à de Fuminho. O traficante então enviou mensagens para o cônsul Deusdete Gonçalves com ordens para destruir documentos no Brasil que pudessem incriminá-lo ainda mais. “O negro comédia encontrar com o batista / e resolver o trabalho com o carcamano / O machucado cuidar das contas com o peruca / Mikel deve ir a casa ou escritório destruir tudo”, escreveu Fuminho. Gonçalves repassou os recados com Agati, Palić e os demais, mas em troca pediu um “agrado” por parte dos traficantes. “Eu espero um pequeno agrado. Eu não quero muita coisa, meu negócio é ajudar. Um pequeno agrado pra mim. […] A gente queima muito cartucho, a gente é dedicado”, disse a um advogado contratado pelo PCC no Brasil.
O cônsul ainda solicitou 1,5 milhão de dólares que, segundo ele, seriam entregues ao primeiro-ministro de Moçambique, Carlos Agostinho do Rosário. Em troca, Rosário atuaria pela libertação de Fuminho, segundo o cônsul. “Eu achei uma abertura maior com o primeiro-ministro e ele falou: ‘não, a gente pode tentar resolver’. […] Que eu falei que o rapaz [Fuminho] não é tudo aquilo que tá saindo na internet, que o rapaz é empresário aqui, é gente boa”, disse Gonçalves aos advogados do PCC. Ainda segundo o cônsul, o primeiro-ministro prometeu retardar a extradição do traficante (“Ele disse […] ‘eu seguro pra você, mas eu seguro até certo ponto’”).
Não se sabe se a propina foi efetivamente paga pelo consórcio criminoso. Fato é que, no dia 19 de abril, em uma operação sigilosa, o traficante foi entregue pela polícia local aos agentes da PF na pista do aeroporto da capital moçambicana. Após uma rápida escala em Guarulhos, o avião da FAB pousou em Cascavel, Oeste do Paraná, de onde um helicóptero da PF levou Fuminho para a penitenciária federal de Catanduvas, cidade vizinha. Desde então, o traficante segue preso.
Procurado pela piauí, Gonçalves disse que as nomeações de Tuta e Agati foram impostas pela Embaixada de Moçambique no Brasil. “Passados alguns meses, quando eu demiti os dois, comecei a ser perseguido pelo governo moçambicano e perdi o posto de cônsul”, afirmou. Gonçalves, que é brasileiro com cidadania moçambicana, negou que tenha conversado com advogados do PCC a respeito de Fuminho, apesar dos registros de áudio obtidos pela PF. A Embaixada de Moçambique em Brasília não se manifestou. Coincidência ou não, na mesma época em que Agati negociou o atacante Diogo Vitor com o Cruzeiro, o clube mineiro fechou uma parceria com o governo de Moçambique para o intercâmbio de atletas do país africano
Apedido da PF e do MPF, a 23ª Vara da Justiça Federal em Curitiba decretou a prisão de Agati, Guzmán e de outras nove pessoas, em dezembro último. Mas Agati soube com um dia de antecedência da operação da PF, batizada de Mafiusi, e conseguiu fugir. Só seria preso no fim de janeiro, quando decidiu se entregar, após ter pedidos de habeas corpus negados pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região. Em nota, o advogado dele, Eduardo Maurício, definiu Agati como “um empresário idôneo e legítimo, primário e de bons antecedentes, pai de família, que atua em diversos ramos de negócios lícitos, nacionais e internacionais, sempre com ética e seguindo as leis vigentes e os bons costumes”. Também afirmou que Agati é inocente “e isso ficará provado ao final do processo” e qualificou a prisão do empresário como “ilegal e abusiva” por causar a Agati “evidente constrangimento ilegal, já que se colocou à disposição da polícia de livre e espontânea vontade, a fim de colaborar com a Justiça na busca da verdade real dos fatos”.
Para Maurício, as acusações da PF e do MPF são “ilações sem qualquer fundamento, baseadas em conversas telefônicas no telefone criptografado Sky ECC, prova manipulada e nula de pleno direito, que fere a cadeia de custódia da prova, lei de interceptação telefônica e normas e princípios constitucionais”. Por fim, o advogado disse que Agati nunca utilizou telefone com esse aplicativo.
A investigação da PF prossegue em relação à venda do passe de Diogo Vitor para o Cruzeiro e à tentativa de resgate de Fuminho em Moçambique.
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