O futebol é um mundo à parte, onde quase tudo vale, desde que seja a favor do time para o qual se torce. E quem não tem muita ligação com este esporte custa a entender ou fica indignando com certas coisas que vê. Neste contexto, vale a pena ler o artigo “Licença esportiva” do escritor cubano Leonardo Padura na Folha de S. Paulo de sábado.
A propósito dessas jogadas, um dos mais conhecidos comentaristas de futebol do mundo hispânico, Mario Kempes, antigo astro da seleção argentina, atreveu-se durante a transmissão a chamar de “delinquente” um dos jogadores que encenaram essas trapaças, ainda que não tenha demorado a atenuar a classificação definindo-o apenas como “delinquente esportivo”. Porque, ao que parece, se trata apenas de um jogo e o engano cometido não é tão grave, certo?
Vocês conseguem imaginar um escritor que, para ajudar um colega menos talentoso, escreva um livro, envie-o a um concurso com o nome do amigo e, tendo obtido um prêmio, os dois celebrem a ocasião juntos –pois o amigo beneficiado, em um ato de gratidão elementar, partilha com o benfeitor os benefícios econômicos da recompensa?
E o que me diriam de um escritor que, para resolver um problema de bloqueio criativo, toma ideias e textos de outro autor e os reproduz como se fossem seus? Ou de um pintor que copia os trabalhos de outro? Ou de um músico que rouba acordes?
Claro que todos condenaríamos artistas como esses, por serem fraudulentos, plagiários, enganadores. E não lhes emprestaríamos nossa simpatia, pois teriam feito algo eticamente reprovável, e passível até de punição judicial.
Mas agora me pergunto, lhes pergunto: como é possível que admitamos como algo normal, quase admirável, que um esportista simule faltas, trapaceie, para vencer uma partida e, ao fazê-lo, ganhar seu salário? Que qualidades éticas pode ter uma pessoa que, para atingir seus objetivos, recorre a essas artimanhas diante de todos mas, além disso, é celebrado por quase todos e com a maior impunidade?
Será que os esportistas, profissionais ou amadores, multimilionários ou pobres, têm licença especial para violar as regras éticas mais elementares?
Poderíamos nós, escritores, jornalistas, artistas, recorrer a esses mesmos truques sujos para enganar o público e desfrutar tranquilamente dos benefícios que eles nos propiciassem?
Em defesa da limpeza ética do mundo do esporte, alguém poderia recordar, talvez, que o público, a imprensa e certas federações tendem a ser muito radicais quando um competidor se dopa para melhorar de rendimento. E isso é fato. As condenações costumam ser drásticas e a perda da confiança do público difícil de superar, como ocorreu a alguns superastros do beisebol norte-americano… Mas e enquanto eles se dopavam e ninguém sabia? Enquanto isso, eles eram aplaudidos, admirados, bem pagos. Eram os reis da popularidade e do espetáculo!
É evidente que o ato de se dopar não acontece em público, e todos podemos afirmar que fomos enganados, traídos em nossa confiança pelo “delinquente” esportivo. E por isso não os perdoamos… Mas se, como um mágico, ele executa um truque diante de nós e nos faz felizes… tocamos a aplaudir! São gênios, olha só o que fizeram!
É lamentável ter de recordar agora que ética, decência e respeito ao próximo são valores universais do comportamento. E que sua violação é um ato antiético ou imoral, indecente, e uma falta de respeito para com os outros. Não importa que isso ocorra na arte, na política ou no esporte. Não importa se quem nos engana e prospera com essas trapaça se chama Cristiano Ronaldo, Neymar, Kompany ou Luis Suárez, que seja milionário e famoso, ou se quem nos engana é um pobre desconhecido qualquer. Ou sim, importa: já que esses milionários se tornaram milionários porque você e eu acreditamos que são grandes no campo de jogo. Ainda que o sejam, muitas vezes se comportam como anões morais.”
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