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América será, possivelmente, o primeiro clube brasileiro da Série A, a se tornar empresa. Mas todo cuidado é pouco para se encontrar o parceiro certo

Datas divulgadas pela Conmebol dos jogos do América contra o Guarani do Paraguai pela Libertadores 2022

O processo está em franco andamento, num trabalho de organização interna e prospecção de possíveis parceiros, que vem de mais de dois anos. Sem falar nos quase 20 anos que esta e as diretorias anteriores vem trabalhando para reestruturar o clube, fora e dentro de campo. O patrimônio físico está entre os maiores e melhores do Brasil: um estádio usado pela FIFA na Copa do Mundo de 2014, quase no centro de Belo Horizonte; um centro de treinamentos para o profissional e outro para as categorias de base, excelentes. Um Shopping Center, dos melhores da cidade, onde está a sua sede administrativa e onde o Cruzeiro era inquilino num dos muitos andares de propriedade do Coelho. Uma belíssima história no futebol mineiro e nacional. Seguramente um dos clubes mais transparentes entre todos do país, se não for o mais transparente.

Está com a faca e o queijo nas mãos para negociar em ótimas condições com qualquer pretendente de qualquer parte do mundo. Como não está de pires na mão, nem pedindo “pelamordedeus” para surgir um “Skeik árabe” ou um bilionário russo, pode continuar tocando a sua vida, principalmente com o dinheirão que está entrando em função da permanência na Série A, participação na Libertadores e possivelmente também na Sul-americana.

Ao contrário do que a maioria dos torcedores e dirigentes de clubes brasileiros pensam, se tornar “empresa” não é garantia de sucesso. Se não houver uma boa gestão o clube simplesmente pode deixar de existir, já que a legislação traz benefícios, mas regras duras, além de fiscalização de verdade de órgãos federais.

Há muitos exemplos mundo afora de clubes que se deram mal ou que estão passando apertos inimagináveis, como o Bordeaux, da França, como mostra esta reportagem de ontem, da revista eletrônica Trivela:

* “Bordeaux está sob risco de falência após proprietário norte-americano abandonar clube à própria sorte – Fundo de investimentos King Street não vai mais financiar o clube e o colocou sob proteção do Tribunal do Comércio”

 

Em foto do site do clube, a torcida do Bordeaux, um dos maiores clubes da França – www.girondins.com/fr

Seis vezes campeão da Ligue 1 e um dos clubes mais tradicionais da França, o Bordeaux vive uma temporada terrível de futebol pouco inspirado, vestiário rachado, resultados ruins e risco real de rebaixamento para a Ligue 2. Como se o desastre esportivo não fosse suficiente, o clube agora vive um pesadelo administrativo após, nesta quinta-feira (22), o seu proprietário, o fundo de investimentos norte-americano King Street, anunciar que estava abandonando a instituição à própria sorte. Em um comunicado publicado no site oficial do clube, o fundo afirma não desejar mais dar suporte e financiar os compromissos atuais e futuros do Bordeaux. Com a ação, entrega o controle do clube ao Tribunal de Comércio de Bordeaux, que terá que negociar as dívidas com os credores e encontrar um novo comprador de forma a evitar a falência da instituição. No pior cenário possível, estamos falando de um recomeço nas divisões amadoras do futebol francês.

Uma situação tão catastrófica como a atual não se explica de forma simples e tem raízes que vão além dos donos atuais. Em 1999, inspirado na empreitada do Canal+ no PSG, o grupo de TV francês M6 decide se aventurar no futebol e adquire o Bordeaux. Apesar de historicamente honrar com seus compromissos no clube, o grupo estabelece, a partir da conquista da Ligue 1 de 2008/09, uma operação irresponsável, vivendo acima dos seus meios e pagando salários incompatíveis a jogadores que não traziam o retorno em campo. Para piorar, a partir de 2015, a mudança do tradicional Estádio Chaban-Delmas, no centro da cidade, para o Matmut Atlantique, construído para a Eurocopa 2016 nas bordas da cidade, passa a representar não apenas o distanciamento de seus torcedores como também gastos suplementares, na casa de € 4 milhões por ano.

Embora a situação assumida pelos norte-americanos não fosse das melhores, desde que o King Street comprou o clube no final de 2018, a gestão tem sido das piores no Campeonato Francês, e o fim que agora se anuncia já vinha sendo previsto por torcedores, que há muito tempo protestam contra o fundo – inicialmente pela gestão distante do povo e pela falta de um projeto esportivo, mais tarde pelo caminho ao qual vinham levando o clube financeiramente, passando por uma mal-sucedida mudança de identidade visual com o novo escudo controverso adotado desde junho de 2020.

Entre 2017 e 2020, o Bordeaux viu sua folha salarial aumentar de € 49 milhões para € 69,9 milhões. Nos bastidores, funcionários de alto escalão e dirigentes vivem com salários “parisienses”, como descreveu uma fonte ao jornal L’Équipe. Para sustentar uma máquina dessas, precisaria haver em campo uma equipe competitiva, capaz de se classificar constantemente para competições europeias, mas a realidade girondina esteve distante disso nos últimos anos.

Em tempos normais, a situação já seria delicada, mas ela acabou seriamente agravada pelo momento perigoso que vive o futebol francês. Além da perda de receitas de bilheteria causada pelo fechamento dos estádios devido à crise do coronavírus, a liga francesa viu seu lucrativo negócio pelos direitos de transmissão das duas primeiras divisões nacionais com a Mediapro ir para o buraco ainda na metade da primeira temporada do acordo. Entre o que já havia sido pago pela Mediapro e aquilo que o Canal+, novo detentor dos direitos, se comprometeu a pagar, as cifras previstas para a LFP, organizadora das duas primeiras divisões francesas, caíram de € 1,1 bilhão para € 670 milhões na campanha 2020/21, afetando diretamente os clubes.

Em julho de 2020, para passar pelo crivo da DNCG, órgão que fiscaliza a saúde financeira dos clubes na França, o King Street havia feito um aporte financeiro de € 27,5 milhões ao clube. Mais tarde, em dezembro, injetou mais € 40 milhões para cobrir o déficit da temporada atual, afetado pela questão sanitária e dos direitos de TV mencionadas acima. Estes aportes garantiram que o clube pudesse honrar seus compromissos da temporada atual, mas o crescimento da dívida, que está hoje projetada em torno de € 73 milhões, é algo que o King Street não quer assumir.

A decisão de colocar o Bordeaux sob controle do Tribunal de Comércio é um procedimento que visa encontrar acordos com os credores, em especial o fundo Fortress, ao qual o clube deve € 50 milhões, segundo o L´Équipe, possivelmente anulando parte da dívida ou a parcelando. O passo seguinte seria, então, encontrar um novo comprador. Agora sob tutela do Tribunal de Comércio, a aquisição, em si, aconteceria sem custos ao eventual comprador, que, por outro lado, precisaria assumir a dívida.

Com a situação colocada, o L’Équipe fala em alguns possíveis cenários daqui pra frente. No mais positivo, um comprador apareceria imediatamente, e o clube retomaria suas atividades. No pior deles, sem acordo com os credores e sem a possibilidade de parcelamento da dívida, o clube pode se ver diante de um plano de liquidação judicial e, sem um comprador, tendo que declarar falência e recomeçar nas divisões amadoras do futebol francês.

Ao menos publicamente engajado com o clube desde a sua eleição como prefeito da cidade em 2020, Pierre Hurmic afirma que a prefeitura está em contato com dois potenciais compradores. Crítico da gestão King Street, o prefeito afirma querer garantir que os possíveis novos proprietários demonstrem “ligação com o clube, amor pelo futebol e vontade de territorializar o clube”.

Um nome, em especial, parece tomar a frente entre os candidatos a possível comprador do Bordeaux. Bruno Fievet, empresário que passou o último ano negociando com o King Street uma possível compra do clube, havia recentemente largado a ideia, diante da resistência do fundo de investimentos. Com a nova situação, diz estar pronto para voltar às negociações.

“Tínhamos recebido uma resposta negativa após uma oferta que fizemos em setembro. Eu não via a luz no fim do túnel neste projeto de aquisição, mas ela chegou hoje. Concretamente, vamos discutir com o tribunal para saber sob quais condições o clube está à venda”, afirmou à rádio RMC.

Paralelamente ao risco de falência e queda da Ligue 1 no tribunal, o Bordeaux enfrenta uma luta complicada dentro de campo para se manter na primeira divisão nacional. A primeira metade de temporada se anunciava positiva para a equipe, ao menos nos resultados, e uma vaga para a Liga Europa ainda estava de certa forma ao alcance dos girondinos, que, ao fim da 21ª rodada, se encontravam a sete pontos do quarto colocado, o Monaco. No entanto, na 22ª rodada, a derrota por 2 a 1 para o Lyon deu início a uma sequência de dez derrotas, um empate e apenas uma vitória.

A cinco rodadas do fim, o Bordeaux ocupa hoje a 16ª colocação, com 36 pontos, cinco a mais que o Nîmes, 18º colocado, na repescagem. O timing terrível da bomba fica ainda pior visto que, neste fim de semana, os girondinos enfrentam o Lorient, 17º colocado e concorrente do Bordeaux na briga pela permanência.

O Bordeaux terá muito em jogo nas próximas semanas, seja nos gramados ou nas salas e corredores do Tribunal de Comércio. Que um clube de tamanha estatura tenha sido largado em uma posição tão delicada por um fundo de investimentos norte-americano apenas dias depois de donos estrangeiros bilionários tentarem tomar para si o controle da elite do futebol europeu, é para se colocar em questão todos os mecanismos que estão hoje em vigor para decidir quem pode ou não tomar controle de clubes de tradição centenária.

https://trivela.com.br/franca/ligue-1/bordeaux-esta-sob-risco-de-falencia-apos-proprietario-norte-americano-abandonar-clube-a-propria-sorte/


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Comentários:
14
  • Humberto disse:

    Tem muita gente por ai achando que é só virar clube empresa e pronto, serei uma potência. Se a gente for pesquisar a fundo a grande maioria se tornaram clubes medianos e muitos até faliram. Então muito cuidado com esse negócio, e isso serve pra todo clube, o perigo esta nas intenções do investidor.

  • Renato César disse:

    Uma curiosidade sobre este processo de migração para SAF que pouca gente presta atenção neste momento, só preocupada em soltar foguete: caso de errado, o caminho de volta não só transferir o futebol para o CNPJ antigo.

    Se um comprador resolver pular fora em algum momento, o clube tem que começar a sua caminhada do zero. Isto significa última divisão de campeonato regional no primeiro ano para, se der certo, tentar ir para a série D no outro ano.

    Quem estiver entrando agora, pelo desespero de não ter um tostão furado para comprar um pingado na padaria da esquina, aposta tudo o que tem e o que não tem.

  • Renato César disse:

    Em um outro momento, anterior ao surgimento do Ronaldo, eu comentei aqui que o cuêi era um clube pronto para virar empresa e que possivelmente seria muito bom negócio tanto para o clube quanto para o investidor.

    Podem se preparar para ver o alviverde subindo de patamar nas disputas. E, quando o investidor sair, o clube estará em condições de continuar sua vida normalmente.

    Outro clube já preparado para virar SAF é o Galo. Mas ainda não é o momento. Possivelmente isto acontecerá em aproximadamente 5 anos, com chances de ser a maior transação da América Latina.

    O tempo continuará nos mostrando as verdades. Aguardemos!

  • sergio disse:

    Antes dessa situação de clube empresa deveria-se pensar em criar uma obrigação na seriedade da administração. Aí que deveriam entrar a CBF. isso aí, agora é tentativa de conseguir investidor para salvar massa falida. É o caso do que houve com a agremiação do Barro Preto. Foi preço de xepa de fim de feira. Existe um grande risco de aparecer interessados em lavar dinheiro. Quem não lembra da tal Parmalat ”investindo” no Palmeiras. Pouco tempo depois estourou um escândalo financeiro da empresa na Itália.

  • Silvio Torres disse:

    Vão vender o Doamond Mall pra abater a dívida. Traduzindo: vão vender o Diamond Mall e o Atlético continua com dívida de UM BILHÃO. Também quero!!!

  • Luiz disse:

    Esse negócio de clube-empresa é uma temeridade. O empresário visa lucro, e muito lucro de preferência! Se o negócio não der certo, core-se um risco imenso.
    Penso que o Cruzeiro tem um relativo mercado, não como um Flamengo, Corinthians, Palmeiras. Tem torcida grande mas a projeção é estadual. O “produto Cruzeiro” anda muito desvalorizado e com uma dívida absurda. Para mim, foi vendido com dinheiro de pinga, como disse o Neto. Fosse num outro momento o preço poderia ter sido outro. Que o Galo fique atento nesse desenrolar celeste e tire lição!
    Caminharemos para isso. O futuro de todos os clubes é esse.

  • Alisson Sol disse:

    De novo: quem está pensando que alguém financia clubes de futebol por ‘investimento”, está realmente precisando mudar de área. Futebol é coisa para quem tem outros investimentos e precisa de “válvula de escape”. Ou para quem tem muito dinheiro e vai fazer uso político do clube. Não é muito diferente de alguém que investe em TV, jornal, etc.: praticamente nenhum dá lucro…

    O América-MG tem um nome incrível para a internacionalização. Que ninguém se engane: times como Liverpool, Chelsea, Manchester United, Arsenal, PSG, Barcelona, Real Madrid e outros tinham torcidas de 5 a 10 milhões de pessoas antes de partirem para divulgação internacional dos clubes. Alguns, como Tottenham, eram clubes com bem menos de 1 milhão de torcedores antes de se internacionalizarem. Não vai ser o “torcedor fiel” que vai a todo jogo. Mas este torcedor praticamente não existe mais. Melhor vender 1 milhão de camisas na China do que viver de tentar levar 5 mil ao estádio para todo jogo.

  • Alexandre (de Curitiba) disse:

    Para bom entendedor, um pingo é letra. Ótimo texto, Chico! Tomara que o projeto de clube-emprasa do América se torne realidade e dê bons frutos. Não basta apenas querer vender o produto, mas antes precisa saber vendê-lo. Ao que parece, o América está no caminho certo.
    Permita-me referenciar uma charge do Duke desta semana, a quem aproveito para mandar um abraço também por este espaço (https://www.otempo.com.br/charges/charge-super-fc-20-12-2021-1.2586655). Ele foi, ao meu ver, cirúrgico na crítica ao modelo de negócio envolvendo o agora “Time do Ronaldo”. Podem querer inventar a desculpa que for, mas o fato é que ninguém vai a um supermercado quando quer comprar uma Ferrari ou um Lamborghini. Nesse tipo de local, normalmente o que você encontra são produtos em liquidação ou em promoção-relâmpago e aí tem mais é que aproveitar e encher o carrinho mesmo.

  • Juliano Salvador disse:

    O América tem objetivos diferentes, pois não tem dívida e nem está falido.

  • Raws disse:

    Se um sócio investidor pensar em um clube com as qualidades que o Chico citou, concordo que o América está bem na fita. Porém nesse caso o investidor tem de mirar, em revelação e valorização de jogadores, pois nos quesitos, bilheteria, quantidade e engajamento de torcedores e consequente patrocínio, aí o América é um dos piores candidatos.
    Que os colegas americanos não fiquem com raiva de minha opnião, pois não é gozação, é fato.