O TREM é um dos melhores jornais de Minas, editado em Itabira. Contestador e cheio de textos e entrevistas da melhor qualidade.
Só conheço o comandante, Marcos Caldeira, através de email e da leitura que faço do que ele escreve e me envia.
Como este texto sobre Heleno de Freitas, um mito do nosso futebol, que já virou livro e agora está virando filme.
Rodrigo Santoro será Heleno nas telas e o seu último enfermeiro no sanatório em Barbacena, o Maurício Tizumba, o grande músico mineiro.
Heleno era tio-avô de Bebeto de Freitas, ex-técnico da seleção brasileira de vôlei, presidente do Botafogo e diretor do Atlético.
Confira o texto:
“O JOGO DA VIDA”
EDMÍLSON CAMINHA – Brasília-DF
Determinados personagens me fascinam:
pelo poder que exerceram, pela beleza que
tiveram, pelo talento com que brilharam –
mas, principalmente, por uma certa vocação
para a tragédia, pelo sofrimento e a desventura
a que, de uma ou de outra maneira, foram
condenados. Getulio Vargas, Leila Diniz e
Nelson Rodrigues são exemplos. Talvez ao direito
à glória corresponda, como imposto, a provação
do infortúnio, o padecer da infelicidade.
Heleno de Freitas viveu uma dessas histórias.
Mineiro de São João Nepomuceno,
para seus pais provavelmente ninguém discorreu
sobre a origem do nome, o passado
grego repleto de mitos e dores. Chamaram no
assim sem que soubessem que nele se
reencarnaria um deus, a reinar grandioso no
futebol brasileiro da década de 40. Mestre de
uma geração, à arte de Heleno deve o Botafogo
tardes inesquecíveis, noites que ficarão
para sempre na memória do clube. A cada
bola que transformava em gol, a explosão da
torcida realizava, por segundos, o ideal da
fraternidade humana, entre beijos, abraços e
sorrisos de pessoas que se olhavam pela primeira
vez.
Senhor do estádio, o ídolo era quase
indiferente à multidão que o amava, certo de
que nascera para ganhar, vivia para vencer. Um
gol era, apenas, o prenúncio do seguinte.
Buscava a perfeição com
a ânsia dos grandes criadores,
com o desespero dos que
a procuram como sonho.
Nele, o artista e o homem travavam
luta de morte, a que
sobrevivia, sem forças, um
ser machucado e infeliz.
Não
lhe interessava menos do
que a vitória, fosse numa final
de campeonato ou num
treino de apronto. Por ela,
brigava primeiro com o marcador,
depois com os companheiros,
com o juiz e até
com a escolta policial, nas
muitas vezes em que saiu expulso.
Um dia, cabeceia para
o fundo das redes a bola que
lhe viera em lançamento primoroso.
O ponta-esquerda corre para abraçá-
lo mas desiste quando ouve: “Na próxima,
vê se chuta mais devagar pra não me
partir a cabeça.” Jamais se punha a serviço
do grupo, da união de forças, da comunhão
de espíritos que se exalta no futebol: todos,
no campo, trabalhariam em função dele,
para que pudesse fazer do jogo uma obra
de arte. Os adversários
também, pois eles é que se
ofereciam à violência dos
chutes, ao desconcerto
dos passes, à desmoralização
dos dribles, ao holocausto
dos gols.
Na época em que os homens
podiam ser bonitos,
mas não muito, Heleno de
Freitas desfilava a sua beleza
no Cassino da Urca e
nas boates de Copacabana
– para o fascínio das mulheres,
a revolta dos namorados
e o pavor dos maridos.
Razão bastante para
que o apelidassem de Gilda,
sucesso de Rita Hayworth
nas salas de cinema. Era
despontar na boca do túnel para que os
torcedores do contra começassem a gritar:
“Gil-da! Gil-da! Gil-da!” Cabelo cuidadosamente
penteado, elegantíssimo no preto e
branco do uniforme, lá estava o belo da tarde,
o dono da noite, a fazer de conta que
não era com ele. Mas sofria, ante o coro a
sugerir dezenas de vezes preferência que
não tinha. Talvez por isso as muitas paixões
que viveu, as tantas mulheres que
amou, várias mais sedutoras do que Gilda,
mais deslumbrantes do que Rita
Hayworth, aventuras que acabariam por
roubar-lhe a saúde e precipitar-lhe o fim.
Do sanatório em Barbacena jamais sairia,
presa da loucura que lhe trouxera a sífilis. A
cabeça rodando no olho do furacão, julgava-
se ainda o grande Heleno, pronto para
entrar no derradeiro minuto, fazer três gols e
virar a partida. Nas profundezas da noite, recebia
a bola, passava por um, por dois, o
estádio em pé, passava por três, vai Heleno!,
e ficava frente a frente com o goleiro,
a cara do enfermeiro asqueroso que o perseguia,
o jaleco imundo como alvo a destruir
com o chute mais potente do planeta,
a bola a trezentos quilômetros por hora
furando a rede para se perder no silêncio
da escuridão. Acorda molhado de suor, senta-
se na cama e chora baixinho, enquanto
amanhece o dia 8 de novembro de 1959.
Assim morreu Heleno de Freitas, louco
e só. Idade: 39 anos.
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