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Antes e agora, o futebol a serviço da política

Uma história interessantíssima, que mostra a importância do futebol e o uso para interesses alheios ao esporte. Reportagem do O Globo, de sábado:

“A maior das rivalidades”

Em 1942 Ucrânia e Alemanha travaram o Jogo da Morte, uma partida de futebol reinventada pela propaganda soviética

… um ucraniano e outro alemão, em agosto de 1942. A disputa, travada no tímido Zenith Stadium, em Kiev, é ainda hoje cercada de boatos e associada ao fim trágico de, pelo menos, cinco atletas. Não à toa, é conhecida como Jogo da Morte. Uma nova versão do embate, entretanto, vem sendo objeto de estudos.

Vencida pelos ucranianos por 5 a 3, a partida foi maquiada de tal forma pela propaganda stalinista que seus reais acontecimentos só foram conhecidos muito após a queda da União Soviética. Ainda assim, a versão fantasiosa permanece sendo a mais divulgada. E foi graças a ela que seus jogadores ganharam estátua no estádio – rebatizado para Start Stadium, nome do time vitorioso -, dois filmes e pelo menos dois livros. Talvez a pesquisa mais extensa tenha sido do escritor britânico James Riordan, autor de “The Match of Death” (O jogo da morte, em tradução livre), que entrevistou filhos de jogadores e pessoas que viram a partida.

Um país ocupado

Em 1942, a Ucrânia era apenas uma das colônias do Terceiro Reich. Mas o império nazista já encontrava pedras em seu caminho pela Europa. Adolf Hitler, que alcançara o zênite de seu poder dois anos antes, via seu exército ser gradualmente escorraçado da União Soviética.

Os ucranianos resistiram o quanto puderam à ocupação. Até 15 milhões deles teriam morrido durante a Segunda Guerra Mundial. Sua contestação aos alemães fez Hermann Goëring, fundador da Gestapo, determinar a morte de todos os homens com mais de 15 anos.

A cúpula do Reich foi ainda mais longe: nomeou como administrador do novo território Erich Koch, um dos mais sanguinários comandados de Hitler. Seus sentimentos em relação ao território que governava podem ser resumidos em sua frase: “A Ucrânia não existe… é apenas um conceito geográfico.”

Os punhos de ferro de Koch eram, volta e meia, desafiados por rebeldes. Em setembro de 1941, uma horda de revoltosos atacou o Hotel Continental de Kiev e o quartel-general alemão na cidade. A truculência habitual pôs tudo nos eixos algum tempo depois, mas um homem viu, em meio àquele desespero, a oportunidade para tirar um velho sonho do papel.

Otto Schmidt nasceu em Kiev, mas era alemão. Diferentemente do governador, com quem tinha trânsito livre, tratava os ucranianos humanamente. Chegava a admirá-los – ao menos no futebol. Schmidt era torcedor inveterado do Dínamo Kiev, um dos principais do país, cujos campeonatos esportivos foram abolidos desde a chegada dos nazistas.

Saudoso do escrete, Schmidt empregou, em sua padaria, todos os ex-jogadores do Dínamo que passavam por seu caminho – começando pelo goleiro Nikolai Trusevich, que ajudou a encontrar os demais.

O empresário estava em plena busca pelos antigos ídolos quando houve o ataque ao quartel nazista. Schmidt, então, propôs ao governador Koch a realização de um campeonato de futebol. Seria a forma perfeita para levantar o moral do Reich após as investidas “terroristas”. A Alemanha montaria uma equipe entre os soldados que estavam à serviço na Ucrânia. Seus adversários seriam forças de outros países aliados a Hitler – Hungria, Romênia, Itália e Eslováquia. E a padaria, claro, também teria sua seleção.

Koch comprou a ideia, mas com ressalvas. Como o nome Dínamo Kiev fora criado por comunistas, a padaria entraria em campo de embalagem nova – nascia, assim, o FC Start. Alguns jogadores da equipe ucraniana também foram barrados, supostamente por envolvimento com atos terroristas.

Recusa em fazer a saudação nazista

Os pitacos do governador não atrapalharam o baile do Start, que, com seus atletas ex-profissionais e de condicionamento físico razoável, superou sem dificuldades os adversários – um deles foi pisoteado por 14 a 1. Até chegar à partida contra a Alemanha, com direito a Goëring na arquibancada.

O encontro não começou bem. O escrete da padaria entrou em campo de vermelho – uma cor sensível para os alemães, antibolcheviques como eram. Os ucranianos tampouco fizeram a saudação nazista. No lugar de “Heil Hitler”, gritaram “Fizkult – ura, ura, ura!”, uma tradicional saudação soviética antes das partidas de futebol.

Ao início potencialmente bélico seguiu-se uma partida tensa, mas leal. Segundo uma testemunha ouvida por Riordan, o pesquisador britânico, “os times apertaram as mãos, posaram para uma fotografia juntos e foram para casa”.

Algum tempo depois, com o triunfo já esquecido, um funcionário da padaria pôs vidro em uma remessa de pães destinada a oficiais nazistas. A sabotagem foi percebida pelos militares, que invadiram a fábrica e mataram 300 pessoas – entre elas, cinco atletas do FC Start. Nem os esforços diplomáticos de Schmidt conseguiram deter o massacre.

Em novembro de 1943, Koch e seus comandados tiveram de bater em retirada. O Exército soviético, que vinha obtendo sucessivas vitórias sobre as forças de Hitler, finalmente retomou Kiev. Mas, ao menos na padaria, a mudança não foi motivo de comemoração. Logo após chegar à cidade, a polícia secreta de Stalin foi ao estabelecimento e prendeu os boleiros sobreviventes do FC Start, acusados de “colaboração”.

“Os atletas do Jogo da Morte tiveram sorte”, escreveu Riordan. “Em vez de matar estes ‘colaboradores’, a polícia secreta e os líderes comunistas locais inventaram um mito.”

De presos a heróis

Riordan apurou que alguns jogadores ficaram até quatro meses presos. Nesse período, a propaganda soviética criou uma nova versão dos acontecimentos do Zenith Stadium. Uma partida banal transformou-se em símbolo da bravura esperada de todos os comunistas. E os novos heróis nacionais estavam proibidos de contar a verdade – eles só puderam sair da prisão após concordarem em divulgar a fantasia concebida pelo Kremlin.

A versão stalinista é, até hoje, a mais conhecida do episódio – e a responsável pelo apelido macabro por que é conhecido o jogo. Segundo ela, a equipe da padaria era composta por atletas esfomeados, um retrato fiel do que era a população ucraniana durante o domínio nazista. Os alemães, por sua vez, estavam representados pela seleção da Luftwaffe, a Força Aérea do Reich. Jogadores talentosos, experientes e nutridos.

Além da diferença física, o árbitro, no relato stalinista, não se destacava pela neutralidade. Era um oficial do serviço secreto nazista, que, antes do jogo, desceu ao vestiário ucraniano para deixar claro o que deveria acontecer em campo: “Vençam e morram, percam e sobrevivam”. Durante a partida, apitou, à toa, diversas vezes em que a equipe da padaria chutava a gol, invalidando os lances.

Apesar da ameaça e do juiz inescrupuloso, a Ucrânia teria encarado o desafio como uma grande exaltação patriótica. Assim, bicou para longe as combinações e despachou a seleção alemã com uma vitória por 5 a 3. Alguns jogadores pagaram com a vida: foram torturados, ou levados a campos de concentração, ou os dois.

“Como o nariz de Pinóquio, o mito cresceu e cresceu”, conta Riordan. “Os sobreviventes da partida foram recebidos como heróis até mesmo na República Democrática Alemã (que integrava o bloco soviético). Mas a história inteira nunca será conhecida, uma vez que o último jogador morreu em 1998.”

CARTAZ


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Comentários:
5
  • Frederico Dantas disse:

    Desde que o mundo é mundo quem escreve a história são os vencedores. Quase nenhuma é totalmente verdade. E há outra frase famosa que diz que em tempos de guerra a primeira vítima é sempre a verdade.

  • anselmo ferreira disse:

    Olá Chico, aqui é o Anselmo de Diamantina, beleza? Quero fazer uma pergunta trazendo essa questão da política com o futebol para o Brasil: Fiquei sabendo que hoje em dia o governo argentino é quem transmite pra lá os jogos de futebol e não sei se estou certo, pela mesma confusão que está havendo entre Clube dos 13 e Rede Globo. O que gostaria de saber e trazer ao debate de todos, se você me permite, não seria o caso de questionar a falta de clareza dos cartolas e a televisão, ujá que isso um dia qualquer desse poderia se colocar em dúvida do futebol estar servindo ao terrorismo e tráfico de armas? Não sei se é encabulação de mineiro desconfiado mas, lá na frente não poderia haver uma guerrinha promovida pelos EUA deixando em dúvida a questão do futebol com compra e venda de jogadores, televisão, patrocínio e dinheiro escondido pra essas coisas que disse acima e aí esse pessoal neurótico dos americanos se servirem disso pra uma eventual invasão? Eu pela minha pobretona de minha intuição só acho que isso ainda não foi usado porque não corre tanto dinheiro como é o caso do petróleo mas, como tudo pode ser pretexto… sei lá, o que você e seus leitores acham disso? Obrigado, Anselmo.

  • Celso Gomes disse:

    …. isso quer dizer que a estoria do Bin Laden é (pode ser) mentira?

  • Frederico Dantas disse:

    Fantástica história.

  • J.B.CRUZ disse:

    Parabéns CHICO: O BLOG também é conhecimento…Comovente o patriotismo da TURMA DA PADARIA, isso mostra o mistério que é o nosso EU interior…